Só os membros do Congresso continuam a receber durante um shutdown ? Falso

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A frase

“Os controladores aéreos não estão a receber. Os funcionários federais não estão a receber. Praticamente as únicas pessoas no nosso Governo que ESTÃO a receber são os membros do Congresso.”

John Kennedy, senador do Luisiana, a 7 de Novembro de 2025, numa publicação no X

O contexto

Foi a maior paralisação da administração pública federal da história dos Estados Unidos – ou shutdown, na linguagem política corrente norte-americana – e iniciou-se a 1 de Outubro. Na origem, a falta de acordo entre democratas e republicanos sobre uma autorização geral de despesa do Estado, que tem de ser dada recorrentemente pelo Congresso, iniciando-se então uma paralisação parcial de serviços e actividades de departamentos federais, devido à falta de financiamento, que se prolongou por 42 dias.

Por regra, a cada ano fiscal, de 1 de Outubro a 30 de Setembro do ano civil seguinte, o Presidente dos EUA submete uma proposta geral que equivale a uma espécie de Orçamento de Estado. O Congresso verte-as depois em 12 propostas de lei que são uma espécie de mini-orçamentos por áreas para financiar diferentes sectores do Estado (por exemplo, a Defesa ou a Segurança Interna). Têm de ser discutidas e aprovadas pelas duas câmaras do congresso: a Câmara dos Representantes (a câmara baixa) e o Senado (a câmara alta), para serem depois enviadas para a secretária do Presidente, que as assina e promulga.

Para as autorizações de despesa entrarem em vigor no início do ano fiscal seguinte, todo este processo tem de ser concluído até 30 de Setembro. Mas como esse prazo é raramente cumprido, os congressistas e os senadores costumam aprovar acordos de financiamento temporário, as chamadas resoluções de continuidade, que permitem ao Estado continuar a funcionar por períodos mais curtos do que o inicialmente planeado. Este ano, essa solução habitual falhou (o que não é inédito). Houve uma resolução aprovada por maioria simples na Câmara dos Representantes, dominada pelos republicanos, mas que não obteve a aprovação no Senado, também dominado pelos republicanos, onde é necessária uma maioria alargada de 60 senadores em 100, o que no actual quadro político obriga a um acordo entre republicanos e democratas – o que não aconteceu até ao último domingo.

Esta paralisação mais recente, resultante dessa falta de aprovação de financiamento, afectou mais de um milhão de funcionários públicos federais (os que dependem directamente do Estado central, e não dos estados e das autarquias). Centenas de milhares de trabalhadores considerados não essenciais foram enviados para casa sem vencimento. Outros, como os controladores aéreos, por serem considerados trabalhadores essenciais, também não receberam os seus salários mas tiveram de continuar a exercer as suas funções. Outros ainda foram despedidos pela Administração Trump. E milhões de norte-americanos, mesmo fora da esfera do Estado, foram afectados pela suspensão de programas sociais, incluindo de assistência alimentar, pelo cancelamento de voos ou pelo encerramento temporário de serviços como museus ou parques nacionais. Outros serviços considerados essenciais continuam a ser prestados, como a distribuição do correio ou o pagamento de pensões.

No caso do Congresso, os membros eleitos (congressistas e senadores) continuam efectivamente a receber salários, mas os restantes trabalhadores e membros não eleitos (assessores, funcionários administrativos) não. A questão é antiga e é controversa, sobretudo durante um shutdown. A 4 de Novembro, quando ainda se estava longe de um acordo para terminar a paralisação (que surgiu entretanto), o senador republicano John Kennedy, do Kentucky, apresentou dois projectos de lei para responder a este foco de contestação e garantir que os membros eleitos do Congresso não receberiam salários até que chegassem a acordo.

Em defesa da sua proposta, intitulada No Shutdown Paychecks to Politicians Act, Kennedy explicou, citado pela sua página governamental que as medidas sugeridas “garantem que o Congresso sente a mesma dor que as pessoas a quem não estamos a pagar.”

“Se não conseguimos fazer o nosso trabalho e financiar o Governo, não merecemos receber o nosso salário”, argumenta.

Ainda durante a sua defesa da proposta, Kennedy publicou, a 7 de Novembro, na rede social X, a referida alegação de que “Praticamente as únicas pessoas no nosso Governo que ESTÃO a receber são os membros do Congresso.

Os factos

Para analisarmos a veracidade da frase e, portanto, perceber se o Congresso é o único órgão do Governo que recebe o salário durante uma paralisação, é preciso esclarecer a orgânica do Estado norte-americano (que, no discurso político comum norte-americano, é referido no seu todo como “Governo”, apesar de essa expressão não ter equivalência directa com o significado de “Governo” em Portugal, restrito a apenas um órgão de soberania, relativo ao poder executivo do Estado). A Constituição dos EUA estabelece que o “Governo” (o Estado) é constituído por três poderes: o legislativo (correspondente ao Congresso), o executivo (formado pelo Presidente, vice-presidente, departamentos, agências independentes, comités e comissões) e o judicial (Supremo Tribunal e tribunais federais).

É verdade, como disse John Kennedy, que os membros do Congresso continuam a receber o salário durante uma paralisação. Isto porque está previsto no Artigo 1, Secção 6 da Constituição que o seu vencimento deve estar garantido por lei e através do Tesouro dos EUA. Em 1983, foi criada uma verba permanente, não dependente de aprovação anual.

No entanto, há mais órgãos governamentais que, durante a paralisação não viram os seus salários afectados. Nomeadamente, a figura mais alta do poder executivo, ou seja, o próprio Presidente dos EUA, Donald Trump. A Constituição — Artigo II, Secção 1, Clausula 7— proíbe que o Presidente veja o seu salário suspenso (ou até mesmo, reduzido) enquanto ocupar o cargo. Aliás, uma interpretação do Congresso em 2018 sublinha que tal regra se aplica “independentemente de um shutdown“.

Há, porém, outros membros do poder executivo que, apesar de serem obrigados a manter funções, têm o salário suspenso, que é pago retroactivamente no final da paralisação.

O poder judicial goza de um estatuto semelhante. O Supremo Tribunal mantém o salário — como contemplado no Artigo III, Secção 1 —e os funcionários que provem ter uma função necessária para o funcionamento judicial, mantêm funções e recebem, também, no final da paralisação.

Segundo dados fornecidos pelo Bipartisan Policy Center, foram dispensados 6700 funcionários e 730 mil pessoas mantiveram funções sem receber, excluindo os militares no activo, a Guarda Nacional e a reserva militar.

No entanto, 830 mil trabalhadores da esfera pública, englobados nos exemplos referidos, mas também noutras agências e comissões públicas, mantiveram o vencimento durante o shutdown. Isto porque os seus salários não dependem do orçamento federal, mas sim de verbas independentes ou de pacotes orçamentais como o One Big Beautiful Act ou o Inflation Reduction Act.

O veredicto

Os membros do Congresso continuam, de facto, a receber o seu salário durante o shutdown. É, contudo, mentira que tenham sido os únicos beneficiários no Estado norte-americano (ou no “Governo”, no significado conferido pelos norte-americanos ao termo). Na verdade, todas as principais figuras e titulares dos órgãos de soberania continuaram a receber, assim como funcionários de outros órgãos cujo salário não depende do orçamento federal. A afirmação de Kennedy é, por isso, falsa.

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