
Nos últimos dias, reacendeu-se o debate sobre o estado do Serviço Nacional de Saúde (SNS) e, neste contexto, ouvi com particular atenção o episódio do podcast P24 com o título “O SNS afunda-se e não parece haver dinheiro capaz de o salvar”, em que uma frase ressoou: “Contratar mais médicos e mais enfermeiros está a ter menos efeitos do que tivemos antes”. A interpelação é séria. Mas a resposta não pode ser feita com médias que misturam realidades incomparáveis: sem distinguir quem faz o quê, onde e com que grau de responsabilidade clínica, arriscamos um erro de diagnóstico – e de governação.
Mais do que discutir cortes ou reforços, importa compreender onde e como o impacto se reflectirá na actividade clínica e, por extensão, nos resultados em saúde – sobretudo quando confrontado com o quotidiano hospitalar, feito de equipas, turnos longos e decisões complexas.
Entre 2010 e 2023, o SNS aumentou o número total de profissionais em cerca de 25%, segundo o Planapp – Centro de Planeamento e de Avaliação de Políticas Públicas. Contudo, esse crescimento foi assimétrico: de 75% nos médicos internos, cerca de 30% nos enfermeiros, de 22,5% noutros profissionais e apenas de 2% nos médicos especialistas – aqueles cuja avaliação e decisão clínica tornam possível todo o processo assistencial e de cuja experiência depende a formação das gerações futuras. O resultado é claro: mais gente no sistema, mas menos capacidade efectiva de decisão clínica sénior, logo uma aparente “queda de produtividade média” que é, na verdade, uma distorção aritmética e organizacional.
Portanto, ao dizer-se que “se gastou mais e se produziu menos”, oculta-se que o acréscimo de profissionais ocorreu onde a produtividade clínica é, por definição, limitada (fases de formação, perfis de suporte, estruturas administrativas), e não onde a decisão terapêutica nasce e a responsabilidade legal e ética recai. A consequência é dupla: estatística – a produtividade média por “trabalhador do SNS” baixa, mesmo que a produtividade dos especialistas suba; organizacional – mais camadas, mais interfaces e menos autonomia técnica conduzem a tempos de ciclo maiores para a mesma decisão clínica.
Em paralelo, a atractividade do trabalho médico no SNS degradou-se, segundo Pita Barros (Nova SBE, 2023). Entre 2011 e 2022, os médicos perderam cerca de 18% de poder de compra, entre os enfermeiros a quebra foi de 3%, ao passo que os restantes trabalhadores ganharam, em média, 6%. A compressão é elucidativa: o ganho médio dos médicos caiu de 7,7× para 5,1× o salário mínimo nesse período e para 3,9× em 2025. A OCDE confirma: Portugal é um dos poucos países onde as remunerações médicas diminuíram em termos reais desde 2010, ficando entre as mais baixas da UE.
Não há sistema que aguente a longo prazo quando pede mais e responsabiliza mais a quem menos reconhece no quotidiano, apesar de ser a quem todos recorrem quando enfrentam problemas de saúde graves ou complexos e de cuja avaliação e decisão clínica depende a possibilidade mesma de cuidar. Não surpreende, por isso, a crescente saída de médicos do SNS — por cansaço, por falta de progressão ou por ofertas privadas e internacionais mais competitivas —, precisamente na faixa etária e de carreira que sustenta a produtividade clínica e a formação.
Mesmo reconhecendo o investimento nas camadas mais jovens, este desequilíbrio compromete a formação médica especializada e, inevitavelmente, a eficiência futura do sistema. A formação até à certificação como médico especialista é longa, exigente e raríssima na sua responsabilidade humana. Cada geração de internos é hoje formada por menos especialistas e em contextos mais pressionados, o que reduz a transferência de conhecimento e conduz, a médio e longo prazo, a maior despesa directa e indirecta. É uma tendência silenciosa, mas com consequências profundas para o futuro da saúde pública.
Simultaneamente, parece desenhar-se, consciente ou não, uma privatização progressiva por cedência de “franjas de negócio” — cirurgias, partos, consultas — que esvazia o SNS da sua capacidade produtiva e o deixa com os doentes mais complexos, frágeis e socialmente vulneráveis, mas sem recursos humanos adequados para os tratar. Apesar de tudo isto, a qualidade científica e clínica dos médicos especialistas portugueses continua a ser internacionalmente reconhecida e talvez seja também por isso que os resultados em saúde ainda não são piores.
Para se governar por resultados (acesso, eficiência, segurança, valor em saúde), tem de se medir por cadeia de valor clínica, não por agregado indistinto. Um bloco operatório, uma unidade de cuidados intensivos ou uma consulta complexa organizam-se em torno do ato médico — diagnóstico e decisão — no qual tudo o resto se encadeia. Dizer isto não diminui os restantes profissionais; explicita a arquitectura funcional do cuidado. É precisamente por reconhecermos o valor de todos que devemos colocar a decisão clínica no centro do desenho organizacional.
A capacidade de gestão hospitalar com pagamentos atempados, controlo orçamental e informação fiável é essencial. Mas em saúde, a gestão deve ser meio; o fim é a clínica. Quando as camadas administrativas crescem mais do que a capacidade de decisão clínica, o sistema torna-se mais pesado, mais lento e mais caro por caso resolvido. Planeamento por equipas clínicas, autonomia com responsabilização e carreiras previsíveis seriam passos simples, mas estruturantes.
O SNS é, por definição constitucional, universal e tendencialmente gratuito. Para continuar a sê-lo, com qualidade, precisa de realismo e coragem: mais clínica, melhor gestão — nessa ordem. Analisar e valorizar especificamente cada grupo profissional deve ser a prática estabelecida; neste contexto, valorizar os médicos, em particular os médicos especialistas, não é qualquer tipo de corporativismo, é a base estrutural para que enfermeiros, técnicos, auxiliares, administrativos e gestores, em suma, toda a equipa, possam fazer, também eles, melhor. É defesa do doente e do interesse público, para que os doentes — todos — tenham, de facto, o melhor cuidado possível, no tempo certo e no lugar certo.
Sem estes fios condutores, discutiremos cortes e reforços sem uma bússola clara de valor em saúde e, sobretudo, desistimos da forma adulta de colocar os doentes onde sempre deveriam estar: no centro.
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