Protestos da Geração Z: a revolta contra uma vida “sem futuro”

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Ao longe, o indonésio Satya Azyumar sentia-se impotente. Era Agosto e os protestos de jovens contra o Governo indonésio levaram para as ruas dezenas de milhares de “pessoas de todas as cidades, de todas as ilhas”, mas o activista de 25 anos estava numa conferência sobre direitos digitais na Malásia. Satya, que é presença assídua nestes protestos, ia acompanhando as imagens à distância. Quando viu um motorista ser atropelado pela polícia, começou a chorar. “Partiu-me o coração”, conta, em videochamada com o P3, denunciando a forte repressão e força excessiva da polícia. O que lhe parece injusto: “Usar a nossa voz para a mudança não é uma violação da lei.”

A preocupação com o que se passa no seu país de 280 milhões de habitantes levou-o a criar, com os amigos, um movimento de jovens pela justiça social. Satya nota que grande parte dos jovens indonésios tem dificuldades em encontrar casa e emprego, mas o problema é bem maior. “Tem havido um crescimento de práticas autoritárias, violência policial, intimidação, criminalização e, especialmente, o aumento de desigualdades sociais e económicas”, justifica. Agora, em conjunto com outras organizações, estão a pedir a libertação dos milhares de manifestantes detidos nos protestos dos últimos meses.

O activista indonésio Satya Azyumar sentado em cima de um tanque militar numa vigília que fazem às quintas-feiras (Aksi Kamisan) em frente ao palácio presidencial da Indonésia para lembrar as vítimas de abusos de direitos humanos
DR

Tal como acontece na Indonésia, muitos outros países na Ásia (mas também em África e na América Latina) têm tido manifestações contra os seus governos por causa das condições de vida, desemprego, instabilidade económica e corrupção. Como são muitas vezes organizadas e lideradas por jovens, ganharam a designação de “protestos da Geração Z” — a geração de quem nasceu entre 1995 e 2010, sensivelmente.

“Os jovens sempre foram os principais protagonistas dos movimentos sociais, o que não quer dizer que outras pessoas mais velhas não participem”, analisa ao P3 Cristina Nunes, professora de Sociologia na Universidade Lusófona. “Tem a ver com a idade, a radicalidade, a utopia e também com as condições de vida e perspectivas de futuro”, afirma.

Qual o denominador comum destes protestos? “Estes jovens vêem-se sem futuro, estão a aclamar por mais democracia, por justiça social. São países em que aquilo que os une são as fragilidades democráticas e do sistema político”, considera a socióloga.

Protestar para mudar

Paola (que prefere não revelar o apelido por razões de segurança) tem 26 anos, é peruana e tem saído às ruas por considerar que o seu país viola direitos humanos e está cada vez mais inseguro: nos últimos meses, houve um aumento de homicídios, roubos violentos e ataques em locais públicos. Os manifestantes acusam o executivo de legislar para enfraquecer o poder judicial, favorecendo o crime organizado.

“Quando saímos para nos manifestarmos, para marcharmos, para exigir que não sejamos governados por esta classe política, fazemo-lo com esta convicção de que podemos mudar as coisas”, diz ao P3. “Estamos a viver uma crise política de legitimidade das instituições, das autoridades, e sentimos que toda a classe política está a legislar a seu favor e dos grandes poderes económicos. Isto afecta a vida das pessoas”, continua a activista. A mobilização foi “surpreendente” e “em simultâneo” em todo o país.

Os protestos no Peru contra a corrupção têm sido convocados por jovens da geração Z, grupos civis e trabalhadores dos transportes (só desde o início do ano foram mortos 180 trabalhadores de transportes públicos, segundo o Observatório do Crime e da Violência do Peru). Há duas semanas, a onda de insatisfação e a incapacidade de o Governo lidar com o crime levaram à destituição da então Presidente Dina Boluarte.

Mas a revolta não acalmou: os protestos com milhares de manifestantes continuaram contra o Presidente José Jeri, que assumiu o poder há poucos dias e tinha sido investigado por suspeita de enriquecimento ilícito e de abuso sexual, acusação entretanto arquivada. No início da semana, o novo chefe de Estado declarou estado de emergência de 30 dias na capital, Lima, indicando que a mobilização de forças armadas servia para combater o crime organizado. Ainda assim, os jovens de um grupo chamado Colectivo Generación Z dizem que continuarão a marchar contra o actual Presidente e em homenagem a Eduardo Ruiz, o rapper de 32 anos morto por um agente da polícia nos protestos da semana passada. Há ainda mais de 100 polícias e civis feridos.

Protestos no Peru
Klebher Vasquez/Anadolu via Getty Images

Além do descontentamento com os dirigentes políticos, fervilha no Peru uma insatisfação com as condições de vida. “Este contexto é bastante esmagador para a juventude peruana. É muito complicado sair de casa e conseguir sustentar-se pelos próprios meios. Antes não era assim”, desabafa Paola. O sistema de saúde público, diz, funciona de forma deficiente, assim como o acesso ao mercado de trabalho. “A esperança é o que nos vai mantendo sempre à frente.”

Paola também tem participado em manifestações pelo direito ao aborto seguro no Peru
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Estes protestos são um exemplo do envolvimento político de uma nova geração, mas será que resultam em mudanças duradouras? “Os movimentos são assim: nascem, crescem e morrem. Depois vêm outros”, refere Cristina Nunes. Em alguns casos, sair às ruas pode não ser suficiente: as reivindicações “têm de passar para o Parlamento, para se tornarem leis, para se concretizarem institucionalmente e para se tornarem direitos de todas as pessoas”.

A socióloga nota outro aspecto distinto de protestos anteriores: hoje, “as formas de organização e de recrutamento são diferentes”. Os jovens manifestantes estão “menos ligados a partidos políticos e a sindicatos, a formas tradicionais de organização política”, comenta Cristina Nunes, que nota até haver, por vezes, uma certa aversão aos partidos e às organizações formais. E também há mais mobilização com as redes sociais. “É tudo mais fluido, tudo mais rápido, não sei se mais consistente.”

O duplo papel das redes sociais

As redes sociais têm servido de alavanca para mobilizar a população descontente e como canais de denúncia e de partilha. Um dos casos mais recentes aconteceu em Marrocos, onde as manifestações dos jovens foram organizadas online por um grupo anónimo chamado “GenZ 212” (referência ao indicativo do país), utilizando plataformas como o TikTok, o Instagram e o Discord para comunicarem e partilharem informação. Os jovens marroquinos pediam melhores condições de educação e saúde, criticando também os milhões destinados à construção de infra-estruturas para o Mundial de Futebol de 2030, que será organizado entre Portugal, Marrocos e Espanha.

Também na Indonésia Satya acredita que as redes sociais desempenharam um papel importante ao mobilizar os mais novos para os protestos apesar de os considerar “muito orgânicos e desorganizados” e ao “atiçar o fogo”, servindo ainda para educar e consciencializar. Ainda assim, reconhece que também podem ser perigosas se forem usadas pelas autoridades para identificar os manifestantes mais facilmente, “com vigilância e intimidação”.

As redes sociais ajudam ainda a criar um sentimento de comunidade e pertença. “Sinto que a juventude na Indonésia está sozinha neste momento”, afirma, dizendo que muitos jovens não se sentem representados pelo Governo, quase sem oposição no Parlamento. Uma das principais razões dos protestos na Indonésia foi o anúncio em Agosto de aumentos salariais para os deputados da Câmara dos Representantes, que incluíam ainda 50 milhões de rupias (cerca de 2600 euros) para habitação um valor quase dez vezes superior ao salário mínimo em Jacarta.

Em muitas destas manifestações (na Indonésia e não só), surgem bandeiras ou cartazes com o símbolo de uma caveira com chapéu de palha que não será novidade para os fãs de anime: é a bandeira pirata da série One Piece, inspirada nos livros de manga japonesa com o mesmo nome, que segue um grupo de piratas em luta contra governos corruptos e autoritários. Mas já não é só nos protestos: “Vejo-a em todo o lado”, conta o indonésio Satya. “É um símbolo que nos une, sobretudo aos mais jovens. É uma forma criativa de lutar.”

O descontentamento na Indonésia é semelhante ao do Nepal, onde a partilha nas redes sociais do estilo de vida luxuoso das elites e sobretudo dos filhos de dirigentes tem gerado revolta entre a população que luta para viver com os seus parcos rendimentos. O salário mínimo no Nepal foi aumentado em Julho para 19.550 rupias nepalesas, o que equivale a cerca de 120 euros.

Só que o rastilho para os protestos no Nepal foi outro: o Governo decidiu em Setembro proibir o acesso às principais plataformas de redes sociais no país (incluindo o Facebook, Instagram e WhatsApp). A sua justificação era que não tinham aceitado cumprir uma nova lei para a regulação das redes sociais para combater as fake news e o discurso de ódio online. A decisão, que alguns especialistas temiam que limitasse a liberdade de expressão no país, gerou protestos que resultaram na morte de mais de 70 pessoas e na demissão do primeiro-ministro. A proibição das redes sociais acabou por ser anulada.

Em Madagáscar, os protestos contra a corrupção liderados por jovens que começaram por se insurgir contra as falhas diárias no abastecimento de água e de electricidade também fizeram com que o então Presidente Andry Rajoelina fugisse da ilha.

Ainda que estes protestos estejam a ser considerados internacionalmente como os protestos da geração Z, a realidade no terreno mostra que nem só de jovens se fazem estes protestos. “Eu nem diria que este último protesto na Indonésia foi um protesto da geração Z, porque toda a gente de vários contextos, etnias, idades e religiões vieram para as ruas”, diz Satya Azyumar e dá como exemplo a imagem que se tornou um símbolo de resistência nestes protestos: uma mãe com hijab cor-de-rosa que enfrentou a polícia sozinha.

Confrontos entre manifestantes e polícia na Indonésia, em Agosto de 2025
EPA/MAST IRHAM

Na região peruana de Lambayeque, onde Paola mora, os protestos foram até encabeçados por pessoas mais velhas, conta. “Foi motivador ver pessoas em cadeiras de rodas ou em contextos mais complicados solidárias com a manifestação.” Na capital, com mais afluência e repressão policial, eram os jovens que iam à frente, diz Paola.

Satya acredita em acção não-violenta, mas sente que protestos mais agressivos parecem ser o último recurso dos indonésios: “Quando estamos perante um regime autoritário e, especialmente, com elites e oligarcas bem estabelecidos, sentimos que não temos escolha”. E defende que o Governo tem adjectivado os protestos como violentos para “invalidar” as preocupações de quem se manifesta. “Mas as nossas preocupações são bem reais”, diz. Além disso, considera importante falar-se da violência policial, “porque são eles que têm as armas e o poder”.

Satya Azyumar também é activista da Amnistia Internacional na Indonésia
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Os protestos de jovens não são de agora

Ainda que cada país tenha motivos específicos de descontentamento, há uma linha geral em todos estes protestos: as desigualdades crescentes, a corrupção, a incerteza económica. “O que liga estes protestos liderados por jovens é um sentimento comum de que os sistemas políticos tradicionais não respondem às preocupações da sua geração, sejam elas corrupção, alterações climáticas ou desigualdade económica. O protesto torna-se, então, uma válvula de escape óbvia quando os canais institucionais parecem bloqueados”, disse à AP Sam Nadel, director do Social Change Lab, uma organização sem fins lucrativos sediada no Reino Unido que analisa protestos e movimentos sociais. E estas reivindicações não são de agora.

Em 2024, os protestos antigovernamentais no Bangladesh duraram semanas e eram sobretudo liderados por estudantes. Começaram por ser contra a reposição das controversas quotas de 30% dos empregos públicos para veteranos da guerra e descendentes, mas acabaram por se tornar mais abrangentes cerca de 1400 pessoas morreram nos protestos, refere a BBC. A primeira-ministra Sheikh Hasina acabou por se demitir e fugir do país, depois de 15 anos no poder; agora, o procurador-geral do Bangladesh, Tajul Islam, exigiu que a antiga líder fosse condenada à morte.

Em 2022, os jovens do Sri Lanka começaram o movimento Aragalaya, em luta contra o aumento dos preços, os cortes na energia e as longas filas para conseguir gás ou combustível. Os protestos de grande escala também fizeram com que o então Presidente Gotabaya Rajapaksa fugisse do país.

“O fracasso absoluto dos governos da região [da Ásia] em resolver a enorme disparidade entre os mais ricos e os mais pobres significa que há terreno fértil para protestos dos jovens, que acreditam não ter nada a perder ao saírem às ruas”, afirmou o especialista em direitos humanos Phil Robertson, citado pela Deutsche Welle.

Historicamente, as gerações mais novas têm estado muitas vezes na vanguarda da contestação social, como aconteceu na Primavera Árabe dos primeiros grandes protestos a usar as redes sociais como ferramenta de mobilização ou no Maio de 68. Em Portugal, os jovens lideraram as crises académicas de 1962 e 1969 contra a ditadura, os protestos contra as propinas no início da década de 1990, ou os protestos contra a austeridade e a troika, com a manifestação da Geração à Rasca e o movimento Que Se Lixe a Troika. Nos últimos anos, muitos jovens também se têm manifestado em Portugal e na Europa contra o genocídio de Israel em Gaza e contra a inacção climática.

“Não podemos ser alheios à realidade em que vivemos. Este país é construído por todos nós, com muito esforço e trabalho árduo”, acredita Paola. Manifestar-se e lutar por melhores condições é uma forma de protecção. “Como é que eu posso não cuidar do país em que vivo?”

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