
O termo “conflito congelado” é um dos mais reveladores do nosso tempo. Descreve impasses que a diplomacia aprendeu a gerir sem resolver. Do Cáucaso à Transnístria, do Saara Ocidental à Caxemira, o mundo especializou-se em conter tensões, adiar soluções e chamar a isso estabilidade. Foi uma conquista civilizacional, mas também uma anestesia moral. Porque o mesmo gesto que impede o colapso pode cristalizar o futuro.
E é aqui que se impõe a pergunta: estaremos a assistir ao nascimento de um novo conflito congelado na Europa? A guerra na Ucrânia começa a parecer menos uma batalha e mais uma rotina. O entusiasmo inicial deu lugar a cálculos orçamentais, e as manchetes diárias a comunicados previsíveis. Enquanto isso, em Washington, fala-se mais de tarifas do que de trincheiras.
E é precisamente nas margens desse mapa que algo se começa a descongelar. Do Nepal a Marrocos, de Madagáscar ao Peru, a geração Z recusa a ideia de que o impasse é natural. As regiões onde o mundo congelou crises e adiou promessas são hoje as que fervem de desassossego. As geografias da imobilidade e a da revolta começam a coincidir.
Esta geração não conheceu o pós-guerra nem o otimismo das transições democráticas. Cresceu entre crises, guerras “administradas” e promessas de desenvolvimento que nunca chegaram. Assistiu à diplomacia a conter a violência e, ao mesmo tempo, a normalizar o impasse. E decidiu reagir. Cansada de esperar por consensos, tenta agora acelerar a história.
De Rabat a Katmandu, de Antananarivo a Lima, há um padrão que se repete. No Nepal, as manifestações de junho forçaram a demissão do primeiro-ministro Pushpa Kamal Dahal e abriram caminho a um governo de emergência. Em Marrocos, o movimento Gen Z 212 começou num servidor de Discord e transformou-se numa rede de centenas de milhares de jovens que pedem reformas básicas em saúde e educação. Em Madagáscar, a vaga de protestos levou à fuga do presidente Andry Rajoelina e à criação de um governo interino militar. No Peru, a repressão policial matou um manifestante e feriu dezenas. Interpretar tudo isto como mera desordem pública é perder o essencial. Estas manifestações são o reflexo do desfasamento entre instituições que aprenderam a gerir o mundo e cidadãos que exigem que ele volte a mover-se. Não são revoluções no sentido clássico, mas explosões de impaciência cívica em países onde a promessa democrática se tornou rotina e a desigualdade norma.
Há riscos claros: a captura populista, a manipulação digital, a tentação autoritária. Mas há também o que falta quase em todo o resto: energia, sentido de urgência e esperança. A ironia é que o degelo chegou de onde menos se esperava. Não das mesas de negociação, mas das praças.
Enquanto a diplomacia trabalha, com a sua necessária lentidão, para manter o diálogo vivo, os jovens reagem à urgência do quotidiano. Falam de transportes, de escolas, de hospitais. É política em estado bruto, sem slogans, sem marketing ou uma estratégia elaborada de comunicação, nascida da sensação de que o Estado já não responde. A diplomacia continua a ser essencial. Evita o colapso, preserva a palavra, impede que o mundo se parta em mil pedaços. Mas talvez o que esta geração esteja a pedir não seja o fim da diplomacia, e sim que ela volte a inspirar. A paz que hoje procuramos já não é apenas ausência de guerra. É presença de dignidade.
O degelo é sempre caótico. Liberta o que estava reprimido, dissolve fronteiras, cria instabilidade. Mas é também profundamente humano. A apatia é uma forma de morte; o degelo, por mais turbulento que seja, é um sinal de vida.
O desafio é conciliar a prudência das instituições com a urgência das ruas. A diplomacia evita a catástrofe, mas a cidadania evita o conformismo. Uma sem a outra são estéreis. Talvez seja essa a mensagem implícita destes protestos: o mundo não precisa de mais gelo. Precisa de corrente. E se há uma ironia final em tudo isto, é esta: passámos anos a medir a temperatura do planeta e esquecemo-nos da temperatura da política. Pois bem, o clima mudou.
O autor escreve segundo o acordo ortográfico de 1990
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