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Em 2010, as filmadoras de vídeo deixaram de ser produzidas em larga escala. Em 2011, a última fábrica de máquinas de escrever fechou suas portas. Em 2016, a reprodução de obras cinematográficas por streaming aposentou de uma vez a produção de aparelhos de videocassete. Muito antes disso, em 1919, as carruagens foram definitivamente substituídas pelos automóveis.
Algo semelhante parece ocorrer com as pessoas tímidas, que vão aos poucos se tornando obsoletas pelas exigências da sociedade e do mundo do trabalho, uma máquina que demanda performances eficientes diante de um número cada vez maior de testemunhas, verdadeiras plateias, cuja quantidade é justamente o que determina o êxito da performance.
Cientistas atuam como coaches e influenciadores nas redes sociais. Artistas plásticos analisam suas próprias obras, desvendam os segredos de sua rotina de trabalho. Escritores descortinam seu passado, revelam a intimidade de sua concepção — imagine um indivíduo ter que compartilhar com o público a concepção de outro indivíduo, seu filho, a fim de torná-lo mais atraente, mais desejável!
Há algumas décadas, os tímidos ainda tinham esperança de sobreviver em guetos como a literatura e a composição musical, em laboratórios de bioquímica, arquivos e bibliotecas. Hoje, esses esconderijos foram demolidos pelas bombas incendiárias do entretenimento. Aos escritores, por exemplo, que pretendiam divulgar ideias exclusivamente por meio de seus escritos, foram impostas atuações diante de plateias que, quando não são numerosas, os fazem duvidar do caminho que escolheram.
O bibliotecário, o físico nuclear, contabilista, o restaurador de pergaminhos, todos têm que se valer de charme e ousadia ao menos para conseguirem seus empregos, ainda que depois possam imergir novamente em seus afazeres subterrâneos. E se não tiverem que enfrentar bancas de examinadores para conquistar suas posições, precisarão de recomendações de pessoas que deverão adular e seduzir, gastando tempo e saliva. Aos químicos já não bastam, pois, a convivência com suas moléculas, nem aos biólogos a companhia de seus micro-organismos.
Se os lugares acolhedores de antes tornaram-se inóspitos para o tímido, as profissões mais rentáveis e atrativas do momento estão completamente fora do seu alcance. Exemplo: pastor de igreja neopentecostal. Impossível para um tímido arregimentar milhares de seguidores, muitas vezes no corpo a corpo, e depois mantê-los em transe a partir de um púlpito. Outro exemplo: influenciador. Apesar de falar sozinho para a câmera, a pessoa inibida é constrangida a ver sua imagem, ouvir sua voz durante a gravação e mil vezes depois, para avaliar a performance.
Por que então as pessoas tímidas continuam a ser produzidas? Pois elas continuam. Eu mesmo conheço várias, ainda bem jovens, com um futuro de inadequação pela frente. É possível que sua fabricação esteja em declínio, por ora imperceptível, dado que a obsolescência nem sempre é abrupta. Assim como aconteceu com as máquinas de escrever, podemos estar testemunhando uma produção residual, que ainda durará alguns anos.
Ou os tímidos continuarão a ser elaborados em modo artesanal, voltados para nichos de mercado muito específicos. Talvez ganhem novas serventias, como as carruagens que transportam turistas por ruas de cidades antigas. Ou serão absorvidos pela indústria do entretenimento, que lhes permitirá representar a si mesmos em séries de TV e parques temáticos.
Seja como for, continuo a encontrar pessoas capazes de se esconder no banheiro durante toda a festa para não ter que dançar. E de simular dor de barriga para faltar no dia da apresentação do trabalho diante da turma. Quando eu era criança, ansiosos por explicar comportamentos como esse, os adultos ao meu redor diziam, em tom acusatório, que eu era “chucro” e que tinha “medo de gente”. Confundiam acanhamento com incivilidade.
Os tímidos ainda estão aqui. Continuam a ser gerados por uma natureza teimosa, que resiste aos parâmetros estabelecidos pela sociedade dos homens. Sua geração é um ato de rebeldia, como se uma fábrica qualquer insistisse em continuar produzindo máquinas de escrever, sem objetivo de lucro. E assim a oferta continua. Uma oferta que à primeira vista poderia parecer equivocada, quando equivocada na verdade é a demanda.
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