Perceção, evidência e a palmatória: a tríade na nova Lei da Nacionalidade

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A aprovação da nova Lei da Nacionalidade – com votos a favor do PSD, CDS, Iniciativa Liberal e Chega – gerou um dos debates mais intensos da vida política recente. No entanto, este debate revelou não só divergências jurídicas como também um enorme equívoco entre perceção e evidência. A divergência entre o que se vê e o que se sabe, entre o comportamento e a pertença, entre o facto empírico e o vínculo político e simbólico que define o ser cidadão.

Surgiu, no discurso político atual, um pouco por todo o mundo, a perceção de que os estrangeiros tornam o país inseguro, vivem de subsídios e ameaçam substituir, a longo prazo, a “verdadeira” nação, uma ideia desprovida, porém, de quaisquer dados que a sustentem (como decorre de diversos relatórios de entidades públicas e estudos académicos e estatísticos). Ainda assim, a perceção, por ser mais barulhenta, tende a prevalecer no espaço público. O debate sobre a nacionalidade tornou-se, em larga medida, uma disputa entre a perceção plantada e a evidência pública – alimentando uma natureza que descreve Portugal como uma mera fábrica de passaportes, por oposição a um país de oportunidades.

Não posso deixar de demonstrar alguma preocupação com uma das disposições mais controversas da proposta aprovada pelo Parlamento: a possibilidade de um juiz, em casos de crimes graves, aplicar a perda da nacionalidade como pena acessória. A introdução desta hipótese judicial promove uma clivagem entre “categorias de portugueses”: aqueles que estarão imunes a esta pena acessória e os que estarão, potencialmente, sujeitos à mesma, criando uma espécie de “portugueses de segunda” sujeitos a um escrutínio que os outros não têm.

Este mecanismo reativa o velho princípio da “palmatória”: o Estado reserva-se ao direito de castigar o mau cidadão retirando-lhe o estatuto de pertença. O delito deixa de ser apenas uma violação da lei penal para se tornar uma falha moral que invalida o vínculo político. Aplicando Portugal o ostracismo, uma punição da Grécia antiga nuum Estado moderno de direito democrático.

A nacionalidade não deve ser um privilégio revogável. Deve ser, sim, um direito que fundamente a própria relação entre o indivíduo e o Estado, para que não se viole um outro princípio constitucionalmente consagrado, o da igualdade. A Constituição portuguesa, no seu artigo 26.º, protege o direito à identidade pessoal e à cidadania como expressão da dignidade humana. Transformar a nacionalidade a algo sujeito a sanção é transformar a pertença numa recompensa, condicionando a cidadania ao comportamento e abrindo caminho a uma interpretação inconstitucional do próprio vínculo entre o Estado e o cidadão.

Para além do mais, a pressa imposta pela perceção leva a uma possível alteração legislativa – a de alargar para sete/dez anos o requisito de residência legal para naturalização –, sem a regulação de um regime transitório, que coloca no centro do debate constitucional os princípios da proteção da confiança e da segurança jurídica e em risco a própria reputação do Estado Português.

O problema assume especial relevância porque o marco para requerer a nacionalidade é alterado um ano após ter sido sujeito a alterações. Esta alteração anterior, em março de 2024, foi o reconhecimento da incapacidade da entidade administrativa de regularizar a própria permanência de requerentes de autorização de residência nos prazos legais. Subitamente, o que ontem era verdade hoje já não o será.

Pretender agora deslocar, novamente, esse marco temporal não é apenas uma opção legislativa: é uma decisão com impacto direto na credibilidade do Estado.

Não está em causa a legitimidade democrática de rever políticas de nacionalidade; está em causa a forma. Uma alteração deste alcance deve vir acompanhada de cláusulas de salvaguarda e regimes transitórios.

Portugal, como Estado de direito democrático, deve ser previsível. A economia da confiança – que sustenta decisões de investimento, integração e fixação – não se compadece com deslocações súbitas de metas temporais sem transição justa.

A mensagem que enviamos ao mundo não é apenas jurídica: é política e reputacional. Ao proteger legítimas expectativas de quem apostou no país com base em regras claras, afirmamos um Estado de direito robusto e confiável. Senão, que perceção terão os outros de Portugal?

A autora escreve segundo o acordo ortográfico de 1990

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