Um nó feliz

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Já não existe a loja onde, um dia, comprei a gravata que ofereci ao homem que haveria de ser o meu primeiro marido. Era uma loja cara de roupa e acessórios italianos na baixa do Porto. Eu tinha 20 anos e, num impulso, comprei-lhe a gravata. Bolinhas pretas e brancas, mas que fugiam ao padrão habitual. Pouco tempo depois estaria no colarinho dele. Passaram 34 anos e ainda anda no meu pescoço.

A gravata e o fato, que se impuseram mais recentemente no guarda-roupa feminino, um regresso como tudo na moda (Yves Saint Laurent, se estivesse vivo, haveria de sorrir ou Coco Chanel, mais ainda) tornaram-se elementos políticos, muito mais do que adornos.

Nós, as mulheres, podemos usar calças e gravatas e os homens, podendo usar saias e vestidos, não arriscam. O medo do ridículo tolhe muitos homens. Não quer dizer que também não limite as mulheres, mas nós, habituadas a que nos julguem pela vulnerabilidade ou pelo excesso, há muito que deixámos de temer o julgamento alheio. Talvez essa tenha sido a maior mudança nas nossas vidas: não temer, até quando o mundo parece conspirar contra nós. Mas não foi sempre assim? Quando é que o mundo foi um lugar seguro para as mulheres?! Será isso, acima de tudo, que está a ampliar e amplificar a masculinidade tóxica? O facto de as mulheres terem perdido o medo, até quando perdem a vida? São raros os dias em que não vejo notícias de agressividade monstruosa contra nós: ciúmes, a posse irracional, a discussão que se repetia, a ameaça de sair de casa e levar os filhos, tudo se ouve sobre aquilo que motiva um homem para agredir e, muitas vezes, tristemente matar a mulher com quem manteve um relacionamento, sendo que chamar relacionamento a determinados modos de vida é estar a romantizar o inominável.

Há muitos casais a viverem o impossível. A permanecerem no ar irrespirável que todos os dias os asfixia um bocadinho mais. E nem falo no factor económico, que, infelizmente, condiciona muitas vivências. Falo da falta de entendimento. O diálogo que não existe. O medo que impera. O que parece ser melhor que nada e é pior que tudo.

Muitas mulheres começaram a perceber que a solidão escolhida é melhor do que a convivência envenenada e isso pode assustar quem as acompanha. Voltemos às gravatas. As gravatas também vieram dizer que podemos ter o mesmo poder que ‘eles’, mesmo que a sociedade teime em dar-nos menos. Menos direitos, menos condições, menos salários, menos oportunidades. Não deixa de ser curioso que a natureza contradiga tudo isto, quando escolhe as ‘fêmeas’ para dar à luz. São elas que iluminam a humanidade, mesmo em tempos sombrios.

Vinha falar de uma gravata e de uma história de amor e acabei a falar de direitos por cumprir. Não se pára esta batalha. Mas deixem-me ir ao amor. 1991, dois miúdos corriam as ruas do Porto, felizes. Não tinham nada garantido, a não ser a vontade que os unia. Habitaram muitos lugares, dos quais nada resta. Às vezes há uma cor ou uma luz trémula em fundo que me lembra que ali já existiu outra vida ou que demos vida a um lugar que não existe. A cidade fantasma pode ser habitada por corpos reais. O que desapareceu foi a forma anterior. Construímos no vácuo outra vida. A cidade é um sedimento contínuo de novos lugares. Só a nossa memória pode destapar esse passado.

Passei nas ruas do Porto, uma cidade com o meu passado encoberto, e quase nada resta do que ali vivi. Mesmo que eu use a gravata que um dia foi comprada naquela rua, naquele número de porta. O que fica, do que se viveu, nem numa fotografia cabe. Nem em palavras. São os objectos que nos contam. E um dia também eles serão descartados e a história que transportam esquecida. É uma regra que não aceitámos, mas que passará de geração em geração. Descartar. Sacudir a herança.

A gravata continua comigo porque devemos ser firmes na história que queremos que fique de nós. Foi um impulso, como tudo o que se seguiu na vida de dois miúdos, mas foi um acaso feliz, numa cidade que agora parece mais triste. Uma gravata conta uma história de amor. Quando se viveu uma relação limpa, justa, inteira e equilibrada há nós que não vale a pena desatar.

O coração ainda bate

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