
Há uns tempos a esta parte, diria que pouco depois da alteração à Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo (LPCJP) ocorrida em 2015, o acolhimento residencial passou a ser visto quase como “inimigo público” das crianças. Como se o acolhimento residencial fosse o pior que podia acontecer a uma criança, esquecendo-se, quem assim o apresentava, que o pior, na verdade, sempre seria permitir que a criança permanecesse vítima das sevícias a que vinha a ser sujeita. Esta narrativa, a par do argumento de que Portugal, nesta matéria, “estava na cauda da Europa” – muito por força de algumas confusões concetuais, diga-se – foi útil para impulsionar as políticas públicas com vista à criação, implementação e desenvolvimento da resposta de acolhimento familiar que, estando prevista na LPCJP desde sempre, raramente tinha tido a adequada operacionalização.
Tanto o acolhimento familiar como o residencial são medidas de colocação previstas na LPCJP, distintas das medidas executadas em meio natural de vida: enquanto estas apoiam as famílias sem que o Estado assuma diretamente os cuidados da criança, as medidas de colocação já implicam que o Estado avoque essa responsabilidade, estando a fazê-lo, através de Instituições Particulares de Solidariedade Social ou Organizações Não Governamentais com quem, para o efeito, estabelece protocolos/acordos de cooperação.
Em 2023, a então ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social anunciou que, até 2030, não mais que 1200 crianças permaneceriam em acolhimento residencial – uma redução drástica, por referência às cerca de 6500 então existentes. Esta (ambiciosa) meta foi acompanhada da promessa de reforçar a educação parental e mobilizar famílias para acolhimento.
Com efeito, ainda que se notem os investimentos para a implementação e crescimento da medida de acolhimento familiar, o mesmo não podemos dizer do investimento que tem vindo a ser feito nas respostas sociais de educação parental e nada, ou quase nada, tem sido feito no âmbito da medida de acolhimento residencial. As políticas públicas são opções de quem governa, raramente possíveis de agradar a todos os setores. Ora, esta estratégia de investimento direcionado em exclusivo para o acolhimento familiar parece, agora, estar em rota de colisão com os indispensáveis recursos para investir seriamente nas respostas residenciais.
Não há dúvidas de que o acolhimento familiar é uma resposta crucial. Permitir que a proteção do Estado ocorra em ambiente familiar é respeitar os interesses das crianças, porque, tal como tem demonstrado a literatura da especialidade, permite que cresçam em ambiente com vínculos afetivos estáveis, com relações de confiança e segurança, o que favorecerá o desenvolvimento emocional, cognitivo e social.
Por sua vez, o acolhimento residencial é considerado medida de ultima ratio – aplicada quando todas as outras falharam. Mas isso não pode significar que esta seja uma medida prejudicial para a criança.
O Estado tem o dever de garantir que as IPSS/ONG, enquanto sua longa manus, dispõem de condições adequadas: equipas estáveis, qualificadas e com práticas pedagógicas ajustadas às necessidades das crianças acolhidas. Para tal, precisam de ser equipas bem remuneradas – se queremos técnicos altamente especializados a cuidar de crianças traumatizadas, não podemos esperar que o façam por pouco mais que o salário mínimo nacional.
O Estado tem de, para lá da função de financiador, assumir a função de monitorização, fiscalização e regulação da medida e de quem a executa. Os cuidados de uma criança acolhida em Lisboa têm de ser equiparados àqueles de uma criança acolhida em Bragança ou Portalegre. Os dirigentes das IPSS devem compreender que a execução do acolhimento residencial corresponde à concretização de um interesse público, os técnicos devem estar preparados para lidar com crianças altamente traumatizadas; e a Segurança Social deve conhecer profundamente cada casa de acolhimento para garantir decisões informadas e adequadas no momento de fazer o matching entre a Casa de Acolhimento e as características da criança que agora será acolhida.
É fundamental a supervisão de todo o Sistema de Proteção de Crianças em Perigo de forma a resolver problemas de assimetria de informação e conhecimento, às falhas resultantes do não cumprimento da LPCJP e demais normativos e aos monopólios que se vão formando com as instituições que são agentes omnipresentes: que decidem a medida a aplicar e os recursos a alocar e que executam o que decidiram.
Infelizmente, a realidade mostra que ainda estamos longe desse ideal. As instituições de acolhimento continuam a recusar crianças com perfis menos “ideais”, ou mais “exigentes”, a Segurança Social parece manter algumas dificuldades em exercer plenamente o seu papel de gestora de vagas (leia-se, capaz de decidir qual a casa que melhor serve os interesses da criança) e as entidades decisoras (Comissões de Proteção de Crianças e Jovens e Tribunais) persistem em aplicar o acolhimento residencial como forma de “punição”, por exemplo, em casos de absentismo escolar, ou quando os pais e/ou familiares ainda não conseguiram fazer as mudanças impostas nos Acordos de Promoção e Proteção ou decisões judiciais mais ou menos abstratas e quase sempre sem recursos sociais que coadjuvem a essa mudança.
Há ainda um longo caminho a percorrer. Não podemos abandonar o investimento no acolhimento residencial. Os milhares de crianças atualmente acolhidas não serão, de forma automática e por pensamento mágico, transferidos para famílias de acolhimento. O acolhimento residencial não está em oposição ao acolhimento familiar. O acolhimento residencial é fundamental ao Sistema de Proteção de Crianças em Perigo e, por isso, é imperativo que o “pior” do sistema se transfigure na melhor resposta do Estado para as crianças que dela realmente necessitam.
O autor escreve segundo o acordo ortográfico de 1990
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