Após cartão amarelo, Trump insiste num erro não forçado

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Os factos

A paralisação orçamental da administração pública dos Estados Unidos, o chamado shutdown, leva já 35 dias e é a mais prolongada da história do país (o anterior recorde tinha sido estabelecido no primeiro mandato de Donald Trump). 

As consequências avolumam-se e agravam-se. Está parcialmente suspenso, desde o fim-de-semana, o programa de assistência alimentar que ajuda 42 milhões de norte-americanos a pagar compras. A justiça ordenou o Governo a recorrer a um fundo de emergência para mantê-lo em funcionamento. Trump escreveu na rede Truth Social que as verbas só serão desbloqueadas se “os democratas radicais de esquerda” cederem no impasse orçamental, mas a Casa Branca desmente o próprio Presidente e garante que os beneficiários do programa vão receber 65% da ajuda habitual este mês, ou 122 dólares dos 188 atribuídos em média. Faltam os outros 35%, os outros 66 dólares, obrigando milhões a tomar decisões difíceis no supermercado.

Entretanto, há agora cerca de 700 mil funcionários públicos federais norte-americanos em casa, sem receber, e outros 700 mil a trabalhar, mas também sem receber. Há sectores mais afectados do que outros. O New York Times contabilizava apenas 11% dos trabalhadores da Agência de Protecção Ambiental em funções remuneradas, 13% no Departamento de Educação e 38% no Departamento de Estado. Escapam sobretudo a Defesa, Segurança Interna e Tesouro.

Na quarta-feira, o Departamento de Transportes anunciou que irá cortar 10% do tráfego aéreo em 40 dos maiores aeroportos, por falta de controladores, a poucas semanas do início da quadra festiva norte-americana (a última semana de Novembro, a do Dia de Acção de Graças, é tão ou mais movimentada que a do Natal). 

São os efeitos da falta de acordo no Senado, desde 1 de Outubro, entre os republicanos, que necessitam de uma maioria qualificada de 60 votos em 100, e os democratas, que exigem cedências na saúde: milhões de norte-americanos poderão ficar em breve privados de seguro. Não há, de momento, qualquer novidade significativa nas tímidas negociações entre elementos das duas bancadas. 

O shutdown foi apontado pelo próprio Trump, na quarta-feira, como um dos factores explicativos da derrota dos republicanos na jornada eleitoral da véspera, em que, apesar do número limitado de estados e cidades em jogo, perenemente favoráveis aos democratas, registou-se uma clara transferência de voto da direita para a esquerda após campanhas focadas na economia e no custo de vida. Não há, para já, sinal de inversão de rumo por parte de Trump e dos republicanos, apesar de repetidas sondagens indicarem que são estes, e não os democratas, quem os inquiridos responsabilizam pelo impasse.

A análise

Tem sido fácil à liderança nacional republicana desvalorizar os resultados eleitorais de terça-feira. “Não há surpresas”, disse o líder da maioria republicana na Câmara dos Representantes. “Estados azuis e cidades azuis votaram azul”, argumentou. “É idiota reagir exageradamente a um par de eleições em estados azuis”, reforçou o vice-presidente norte-americano, J.D. Vance. 

Mas impõe-se uma análise mais fina. Nas eleições de terça-feira para o governo estadual de New Jersey, a democrata Mikie Sherrill venceu em cinco dos 12 condados onde, há um ano, Trump ganhou. Um deles foi o condado de Passaic, onde os hispânicos formam a maior comunidade, e que em 2024 tinha simbolizado a fuga de votos latinos para a direita. Em todo o estado, um dos que nas presidenciais os democratas perderam uma maior proporção votos (mantendo-se azul, mas por curta margem), Sherrill mais que duplicou agora a vantagem de Kamala Harris. 

Na Virgínia, o outro estado em jogo na terça-feira, e também um terreno favorável aos democratas, a governadora-eleita Abigail Spanberger expandiu significativamente a votação democrata em condados suburbanos predominantemente brancos, outro tipo de palco em que Trump tinha ido tirar muitos votos à esquerda em 2024. Aconteceu nos condados da periferia de Washington D.C., onde residem centenas de milhares de funcionários federais lesados pelo shutdown e pelos cortes e despedimentos decretados desde o arranque do ano por Trump (e, inicialmente, por Elon Musk), pelo que a penalização dos republicanos era ali particularmente esperada. Mas também aconteceu noutros condados de igual perfil socio-económico noutras zonas da Virgínia. 

Os democratas roubaram ainda 12 assentos na assembleia estadual aos republicanos, numa altura em que a Virgínia avança na discussão do redesenho dos mapas dos círculos uninominais que elegem congressistas para Washington. Na mesma noite, a Califórnia aprovou uma alteração legislativa no mesmo sentido, e o seu governador, o expectável pré-candidato presidencial democrata Gavin Newsom, apelou a outros estados azuis para alterarem os seus mapas. Tudo em resposta a uma primeira iniciativa do género, no Texas republicano, a mando de Trump, durante o Verão, que poderá tirar cinco mandatos no Congresso aos democratas em 2026.

Ou seja, há uma erosão do apoio aos republicanos em demografias e geografias onde vinham somando ganhos importantes, e não é necessário esperar por 2026, e muito menos por 2028, ano de presidenciais, para se materializarem riscos para o partido de Trump. A começar pela guerra dos mapas, que poderá influenciar a distribuição de mandatos, e onde Trump deu aos democratas um pretexto para “combaterem o fogo com fogo”, como diz Newsom.

Há, também, um vislumbre de estratégia democrata finalmente revelado na terça-feira. Não basta dizer que o progressista Zohran Mamdani ganhou na única cidade norte-americana, Nova Iorque, onde um candidato com as suas características (imigrante, muçulmano, não branco, jovem, progressista) podia ter ganho, e que o seu sucesso ali não é replicável noutros sítios. Ou que Virgínia e New Jersey são estados azuis, pelo que o triunfo democrata era certo (não era no caso de New Jersey). 

Mamdani, Spanberger e Sherrill, candidatos de perfil diferente em terrenos diferentes, apresentaram declinações de uma mesma mensagem: a de que Trump incumpriu a promessa de recuperação do poder de compra dos norte-americanos. E essa mensagem ganhou eleições com diferentes candidatos em diferentes cidades e estados, num ano que regista o maior número de despedimentos desde 2009.

As sondagens à boca das urnas reveladas pela CNN e pela NBC na terça-feira mostram que é a economia a penalizar a popularidade de Trump e dos republicanos, e que é esse o tema cimeiro na lista de preocupações dos eleitores. Já não é a imigração, como também não são questões identitárias largamente arredadas para segundo plano, este ano, por parte dos candidatos democratas.

O shutdown vem agravar uma percepção generalizada de disfunção económica, comum a estados republicanos e democratas, que a guerra tarifária e os cortes do DOGE intensificaram, que o eventual fim dos subsídios à aquisição de seguros de saúde pode piorar, e que um futuro alívio fiscal prometido por Trump, que beneficiaria sobretudo os contribuintes mais abastados, pode não dissipar. A insistência republicana num erro não forçado pode custar-lhe o poder. Pelo menos, em condições normais.

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