O assunto que me traz aqui é sobre mim e não é sobre mim. É antes sobre nós, mulheres. É maior do que eu. Portanto, sou apenas um pionés num retângulo de cortiça cheio de pioneses. Mas sou um pionés com as minhas feridas. E pico. Naturalmente.
Sabem, rio enquanto escrevo. Não sei se um jornal está disposto a demoras destas. Sei bem que estou a fazer rotundas com palavras e hoje temos de ir diretos aos assuntos nos primeiros dez segundos para agarrar o leitor. Ter assuntos balas porque somos todos presas. Assuntos que matam. E eu trago este, que não mata ninguém. Lamento. Ide, sanguessugas.
Reformulo: não mata de forma dantesca. Não faz chafurdar imediatamente no sangue, como aprendemos a querer agora, vampiros, e não é sequer um assunto Halloween: não está na moda. Só sabe matar devagarinho os sonhos de muitas de nós, e mais, nenhuma de nós se quer responsabilizar pela morte dos sonhos de uma mulher porque não é sororidade, e a sororidade, sim, está na moda. Mas como acontece na “moda”, poucas pessoas percebem de moda. A grande maioria é uma réplica mal feita porque não entendeu nada.
Sou mulher, sou escritora, e ando danada com muitas mulheres. Tenho sentido na pele muitos pioneses a espetarem-me com raiva. Elas, nós, as que mais lêem, as que mais compram livros, as capazes de formarem uma fila numa sessão de autógrafos, essas, nós, não me perdoam por considerações externas. Não me aceitam como escritora por sentirem que tive sorte na genética — sorte? —, por me atrever a mostrar as pernas numa minissaia em vez de ser comedida a mostrar a “lotaria” que me tem posto de bolsos vazios e sonhos magros.
Noto um desejo nojento de cancelamento — essa palavra “nova” que quase parece estrangeirismo — por parte de muitas mulheres em relação a outras como eu, muito também por se atreverem a não serem burras. Deviam ser burras porque a “lotaria” não pode sair duas vezes ao mesmo pionés. É demasiada afronta.
Julgam que lutamos por um galo lustroso e exuberante. Que competimos com elas. Querem-nos na cozinha a fazer assados e a passar camisas que não são nossas. Querem que cuidemos dos filhos delas como mamãs. Temos de dar papinha à boca a um homem de quarenta e três anos. Senão, “Coitadinho do meu menino, não teve sorte, faz tudo em casa”.
Muitas mulheres continuam a fazer de nós galinhas. Temos de pôr o ovo e fazer có-ró-có-có. Mas dói-me mais na aparência. Como é que a aparência pode magoar tanto alguém ao ponto de querermos eliminar o outro? Sim, nós, mulheres, fazemos esse cancelamento. Entramos no jogo antigo mas escudamo-nos do “estrangeirismo”. Não todas, mas sempre demasiadas.
Às vezes ponho-me a pensar e julgo que nos poderão dar algum valor se tivermos um acidente. Se nos saltar um olho da cara, aí sim, corremos o risco de ver a capa do nosso livro exibido no Louvre com vidro à prova de bala, por um único olho. Porque as mulheres, quando se unem, são capazes de tudo.
A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990
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