De pé

0
1

Comecei a fazer surf com oito anos. O meu pai achava que as férias precisavam de estrutura, de uma espécie de pedagogia natural: acordar cedo, enfiar o corpo num fato molhado e aguentar o frio até a coragem aparecer.

O fato de surf agarrava-se ao corpo como uma segunda pele fria, e o cheiro era sempre o mesmo: borracha, sal, um ligeiro bolor das toalhas mal secas. Íamos para a praia antes das nove. Tudo parecia fazer parte de uma liturgia maior.

Durante muito tempo, talvez ainda hoje, o gesto de sentar-me na prancha de surf era mais importante do que a própria onda. Parar o corpo. Ficar ali, no meio do mar, com as pernas mergulhadas na água fria, o corpo flutuante mas tenso, e um silêncio que só a água permite. O mar tem essa capacidade: dissolve ruídos internos. Não é metafórico. É fisiológico. O sistema nervoso autónomo responde à imersão em água fria com um ligeiro abrandamento cardíaco e uma redução da actividade simpática. O corpo, mesmo em pânico, desacelera. A mente aprende com isso.

Às vezes o meu professor dizia: “Estás a ver aquela linha lá ao fundo? Vai demorar quatro minutos a chegar aqui. Mas vem.” Eu olhava. E vinha. Uma ondulação longa, quase imperceptível no início. Li depois que as ondas que surfamos podem ter começado dias antes, a milhares de quilómetros de distância, formadas por ventos sobre o Atlântico norte. São sistemas que acumulam energia, transferida da atmosfera para o mar. E essa energia viaja, intacta, até encontrar a nossa costa, o nosso corpo, o nosso instante. A ideia de apanhar uma onda é, na prática, interceptar uma força que nasceu noutro lugar, noutro tempo. É um encontro entre geografias. Isso sempre me pareceu bonito.

No início o professor empurrava-me ligeiramente. Um gesto simples, técnico, quase paternal. Empurrar uma criança para dentro de uma força natural. Depois deixou de empurrar. Ainda hoje me lembro da sensação do empurrão a desaparecer. Foi o momento mais claro de crescimento que tive. A ausência dele. Crescer é sempre isso: deixarem de nos empurrar e não nos avisarem.

De vez em quando, uma onda surgia como se o mar acordasse. Ele dizia apenas: “Rema.” E eu remava. Eu já sabia quando devia levantar-me, quando esperar, quando desistir a meio. Ele aplaudia se fosse boa. Se não fosse, ficava em silêncio e esse silêncio era tão pedagógico como qualquer elogio.

A maré estava quase sempre a subir. A areia agarrava-se aos tornozelos, o neoprene apertava nas axilas. A água gelava as mãos.

Levantar-se é estranho porque não é natural. Não no sentido automático. Requer qualquer coisa contraintuitiva. É mais fácil ficar. É mais fácil permanecer deitado, curvado, hesitante. É mais fácil ser pedra do que coluna.

Em certos mitos antigos, os deuses castigavam os homens pela verticalidade. Prometeu roubou o fogo e foi acorrentado. Atlas tentou sustentar o céu e ficou para sempre com o pescoço dobrado. O homem que se levanta toca em algo divino. O gesto de levantar, no sentido puro do termo, é uma infração. É dizer: não sou apenas barro. Sou desejo. Sou força. Sou também resistência. Talvez por isso o levantar, mesmo o mais simples, seja sempre uma forma de insubordinação.

Há uma violência no levantar. Um desequilíbrio. Um corpo que se sacode contra o fundo. É o gesto que suspende o colapso. Que, por instantes, o transforma em impulso.

Quando eu me levantava na prancha, depois de remar com tudo o que tinha, depois de engolir água e frio, havia esse segundo em que o mar deixava de ser obstáculo e passava a ser chão. E logo depois derrubava-me outra vez. Mas isso não anulava o gesto. O gesto tinha acontecido. Tinha sido visto.

Levantar-se é o verbo que funda a possibilidade da história. A criança que se levanta depois da queda inventa, nesse momento, a sua narrativa de resistência. A sua primeira ficção verdadeira. A primeira versão do que será, mais tarde, política. É preciso o corpo dizer “estou aqui”, mesmo antes de saber o que quer dizer.

E o mundo, que cai todos os dias, espera que alguém se levante. A terra está cheia de poeira. Poeira vinda de erupções antigas, de desertos distantes, de glaciares partidos.

Talvez levantar não seja só resistência, mas também fidelidade. Fidelidade a uma ideia do humano. Levantar-se, no fundo, é o contrário da desistência. E isso já basta para começar tudo outra vez.

Levantar o mundo. Pelo menos o nosso pequeno mundo. Pelo menos o canto onde estamos. Pelo menos o corpo. Pelo menos o nosso nome, se ele estiver no chão.

Disclaimer : This story is auto aggregated by a computer programme and has not been created or edited by DOWNTHENEWS. Publisher: feeds.feedburner.com