Em que dia das RI estamos hoje?

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Há uns meses, um amigo meu, professor, queixava-se da falta de entusiasmo dos seus alunos. Ânimo parco pelas leituras e debates. Enfim, um ritual de docente universitário. Até que atirou: “Sabes, é que no meu tempo, as Relações Internacionais eram aborrecidas, não acontecia nada”, disse suspirando, ao recordar a relativa pasmaceira na área de estudo durante longuíssimo período da Guerra Fria.

A sua indignação era com o facto de os alunos não perceberem, como ele, o novo fervilhar no campo das Relações Internacionais (RI). A sua frustração tinha a ver com a irritante previsibilidade do mundo na época em que se formou e começou a lecionar. O seu fastio era com uma bipolaridade – EUA e URSS – que se recusava a deixar a arena internacional acelerar.

Eu nasci nessa época, mas cresci na seguinte, sem muro em Berlim, onde nos prometeram uma nova solução final: democracia liberal para todos e unipolaridade para os EUA. A minha adolescência viu a contestação sistemática dessas promessas. Após o 11 de setembro de 2001, chego à universidade num mundo que se reconfigura à volta de terrorismo transnacional, novos interesses geopolíticos, multilateralismo alternativo e guerras preventivas. O mundo que me viu formar já desafiava a unipolaridade americana, focando-se nos atores não-estatais e começando a olhar para a nova competição entre grandes potências. Meses depois, durante a crise financeira dos inícios do século, assumo as minhas primeiras funções profissionais. Aí, o foco já estava na competição geoeconómica, ascensão da China, multipolaridade emergente, sustentabilidade e governabilidade global.

Após tamanha convulsão nas RI, quando comecei a lecionar já ninguém estava de acordo sobre nada, contrariamente à experiência do meu colega. O mundo agora é, simultaneamente: apolar, unipolar, unipolar parcial, bipolar, tripolar, multipolar. Tudo é desordem, fragmentação e reconfiguração. Tudo é polar e polar é nada. Já não há desígnios globais, só existe desglobalização. O multilateralismo não interessa, agora vinga o minilateralismo. Os aliados são coisa do passado, hoje só existem parceiros ad hoc. Até o próprio Estado deixou de ser tudo. Nos dias que correm, só falamos dos nomes dos líderes globais e, com isso, aceitamos a globalidade da sua liderança. Hoje, “L’État, c’est moi”, como diria um senhor de peruca, em meados do século XVII.

Se já ninguém consegue descrever de forma consensual as novas esferas de poder no mundo em que vivemos, então, com a transição das RI para um novo personalismo internacional – uma espécie de RI baseadas, sobretudo, nas relações pessoais e nos interesses momentâneos dos estadistas –, estamos condenados a um burnout precoce. Não pelo facto de se desconhecerem, historicamente, exemplos de soberanos a agir somente pela sua honra, glória e eternidade. Mas, por já não vivermos(?) num sistema personalista estrutural. Por oposição à forma como, no passado, as lealdades dinásticas e matrimoniais eram um elemento estrutural das RI, agora, estas fidelidades personalistas são incluídas à margem do sistema institucionalizado, previsível e burocrático do Estado, ficando refém das emoções mensais e do envoltório mediático em torno dos estadistas.

Concordo com o meu colega. Vivemos um momento extraordinário que deveria suscitar ainda mais entusiasmo aos jovens internacionalistas. E muitos, mesmo muitos, mostram-no todos os anos letivos. No entanto, quer sejamos professores, investigadores, analistas, comentadores ou entusiastas de assuntos internacionais a fúria de ler e interpretar diária ou semanalmente este novo personalismo internacional com as suas flutuações de humor, estados de amizade, parcerias forjadas ou enferrujadas, interesses fugazes, esporádicos, e toda a sua parafernália de tweets, Xs, Thruths e postagens afins fazem-nos sentir falta do que nunca vivemos. Como é que seria, realmente, fazer isto nos anos 1990? Não sei, mas que saudade. Alguém sabe em que dia das RI estamos hoje?

O autor escreve segundo o acordo ortográfico de 1990

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