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A uma hora de Lisboa, Montemor-o-Novo abriga um inesperado polo de excelência sonora. Em plena paisagem alentejana, onde o tempo parece respirar mais devagar, o Studio Quinta Essence, instalado numa herdade dedicada à criação de gado Wagyu e Limousine, acaba de conquistar uma vitrine mundial: dois álbuns gravados ali estão nomeados ao Grammy Latino deste ano, que acontece na quinta-feira (13), em Los Angeles.
O disco Saga, de Yamandu Costa, Martín Sued e Orquestra Assintomática, concorre na categoria Melhor Álbum Instrumental. Já Shin-Urayasu, de Richard Scofano e Alfredo Minetti, disputa o prêmio de Melhor Álbum de Tango. Para um estúdio com pouco mais de um ano de existência, o feito tem sabor de afirmação e de surpresa para quem ainda não descobriu que, no Alentejo, também se grava música com ambição global.
Mais do que a técnica, a geografia também conta. “O lugar te envolve de outro jeito”, diz Yamandu Costa. “Você olha para fora, vê animais, uma paisagem deslumbrante. A vida corre mais leve. É muito agradável produzir aqui.” O músico brasileiro, radicado em Portugal, é presença constante em Montemor-o-Novo, já gravou ali quatro discos e prepara, para janeiro, a gravação de uma orquestra de cordas com mais de 20 músicos assim como mais de 30 músicos da Orquestra Sinfónica de Lisboa. Juntamente com Martin Sued irá gravar em março uma composição composta especialmente para gravação neste estúdio, relativa aos 50 anos do término da ditadura na Argentina.
A ideia do estúdio nasceu da amizade entre Yamandu e o proprietário da herdade, o empresário brasileiro e colecionador de arte contemporânea Raul Felippe. “Quando ele comprou a quinta, fui visitá-la com ele”, recorda o violonista. “Sugerimos montar um estúdio. Era uma brincadeira que não é barata, mas ele entendeu a dimensão do projeto.” Nascia, assim, o que o próprio Yamandu define como “um lugar modular, com equipamentos de primeira e sem gourmetização”.
Equipamento de ponta, vista livre
O estúdio carrega outra particularidade rara no universo da gravação profissional: luz natural. Em vez de cabines escuras e silenciadas, uma grande sala envidraçada abre para o verde alentejano. A estrutura foi concebida pelo engenheiro de som peruano Jorge Cervantes, há 35 anos em Portugal, responsável pela acústica, pelos tratamentos e pelas escolhas técnicas, dos vidros triplos aos cabos de referência. “O Raul quis o melhor e confiou na nossa experiência”, diz. “Trocamos todos os vidros, instalamos painéis acústicos e preparamos o espaço para grandes formações. A qualidade começa no aterramento, na fiação, nos cabos. Detalhe por detalhe.”
A arquitetura interna é pensada para escala variável: três salas amplas, independentes e separadas por vidro “o aquário”, funcionam com biombos acústicos que permitem desde formações reduzidas, de quatro ou cinco músicos, até conjuntos com mais de vinte. Quando é preciso “secar” a sala, reduzir a reverberação natural da madeira e do vidro, entram em cena painéis móveis e soluções de posicionamento. “É um estúdio modular. A gente molda o espaço para o som que cada projeto pede”, resume Yamandu.
Cervantes detalha escolhas que os técnicos reconhecem à distância: cablagem de série de referência “Blue”, conversores suíços de alta precisão, monitores de estúdio e uma cadeia de microfones que combina clássicos de estúdio com peças artesanais, como os fabricados à mão pela marca Kayan, usados em pares estéreo para piano. Segundo ele, só a substituição dos vidros da sala custou perto de dezenas de milhares de euros; o investimento total, incluindo o piano e a eletrônica, supera os três zeros. “Microfone top é como jóia: não desvaloriza”, diz. “O resultado que se escuta lá confirma.”
No centro da sala, um protagonista silencioso: um piano de concerto de 2m74cm que já foi utilizado com frequência por Maria João Pires para gravação de alguns de seus álbuns, hoje a jóia do estúdio. Instrumentistas internacionais como Aaron Parks, Kevin Hayes, Mário Laginha já o puseram à prova. “Os músicos adoram”, afirma Cervantes. “É um instrumento que responde e inspira.”
Lourenço Teixeira de Abreu
Guitarra de B.B. King
Em um canto discreto da sala, repousa outro tesouro silencioso: uma guitarra que pertenceu a B.B. King. O lendário músico a ofereceu ao Papa em 1994, e, anos depois, o instrumento acabou destacado numa loteria de caridade no Vaticano. O vencedor foi o então chefe da guarda papal, que manteve a guitarra guardada na caixa até a sua morte. Só então, em leilão conduzido pelos herdeiros, o instrumento cruzou o Mediterrâneo e encontrou destino inesperado nas mãos de Raul Felippe. Intocada desde que saiu do estúdio do bluesman, as cordas originais seguem ali, à espera de que um músico, “à altura do instrumento”, insiste Raul, inaugure sua nova vida, ainda que com um novo jogo de cordas.
Diogo de Castro, músico e colaborador do projeto, destaca o impacto do ambiente no processo criativo. “Estúdios costumam ser cavernas sem ar”, comenta. “Aqui há luz, campo e respiro mental. Você grava, sai para ver as ovelhas, volta outro. Em jornadas longas, a cabeça respira e o som agradece.”
A primeira sessão oficial do estúdio dá a medida da ambição: o duo de Alfredo Minetti (piano) e Richard Scofano (bandoneon), hoje nomeado ao Grammy como melhor álbum de tango, abriu o calendário e definiu um padrão de captação. Desde então, Yamandu gravou pelo menos quatro álbuns no espaço — entre eles Saga, com a Orquestra Assintomática —, produziu vídeos para seus canais e tem na fila Sur, com António Zambujo, além de um registo com músicos venezuelanos e colombianos batizado Quinta Essência, previsto para novembro.
Entre vacas, arte e futuros discos
O estúdio vive num espaço singular: uma herdade que é, ao mesmo tempo, centro de produção agropecuária de alta qualidade genética e refúgio artístico. Perto dali, reside o artista Ai Weiwei que está concluindo uma instalação de grandes dimensões. Há silêncio e um céu imenso. Não parece, à primeira vista, cenário para um estúdio profissional, talvez por isso o encanto. “Cada vez que vou, sai música nova. É um lugar que inspira”, diz Yamandu, que brinca com a ideia de um dia fincar casa na região.
Lourenço Teixeira de Abreu
A atmosfera doméstica é intencional. Raul Felippe pediu a Cervantes que a sala principal “continuasse sala”, com sofás, tapetes e madeira exposta, estética de casa, desempenho de estúdio. Biombos feitos sob medida, uma régie (sala de controle técnico) compacta e precisa e janelas com tratamento acústico especial (fabricadas pela Alu Vedras) fecham o desenho. “Não é um bunker”, diz Diogo. “É uma sala que vira instrumento. E a luz natural muda a relação do músico com o tempo.”
Enquanto isso, o estúdio se prepara para a temporada de gravações e para a noite do Grammy. “Temos um troféu lá e estamos confiantes de trazer outro”, diz Yamandu, rindo. “É um orgulho ver o Alentejo no mapa da música internacional.”
O campo, afinal, também pode soar cosmopolita. Basta que alguém tenha visão e que as portas de vidro, ao abrir para a planície, deixem entrar não só a luz, mas a música.
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