O Coração Ainda Bate. Os amantes tristes

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Era um saco de plástico como outro qualquer. Um dos vários que recebi nesse fim de dia, em que o cansaço já não me permitia pensar muito no que poderia cozinhar com os ingredientes que havia cá em casa. É sabido que os grandes cozinheiros se podem medir e testar perante a oferta existente: com a fartura é um delírio, mas na escassez é um desafio. Eu sucumbi à falta de opções e pedi umas quantas mercearias que me enganariam a falta de criatividade.

Abri a porta, recebi os sacos e fui abri-los.

Enquanto já o fogão fervilhava no labor das sete da tarde (curioso como não percebia a vontade de o meu pai jantar às sete e agora faço exactamente o mesmo), fui abrindo, um a um, os sacos. Arrumei os coentros, o leite achocolatado, os iogurtes gregos e mais umas quantas coisas que nos definem em prateleiras (a cada um, cá em casa, a sua) e, de súbito, deparei-me com o inesperado: espreitei a medo para aquilo que me parecia o desconhecido. E era. Um saco continha uma encomenda que não tinha sido feita por mim: duas caixas de chocolates e um champanhe francês caro. Toquei a medo naquilo que ainda não tinha dono, mas vinha, claramente, parar à casa errada. E agora?

Já tinha o arroz a fazer, os legumes a saltear e tudo me parecia um puzzle que eu não ia conseguir completar.

Vi-me, a meio do longo corredor da cozinha, a deitar os braços ao alto e a pedir ajuda a mim mesma. Decidi que não haveria de ficar com aquele saco que não me pertencia e fui ao chat, onde mulheres se apresentam com nomes diferentes, embora tudo me pareça resultado de uma tecla única e sem discernimento. “Olá sou a Natália e vou ajudá-la”. Natália parece ter percebido que havia um erro, embora eu nunca lhe tenha dito verdadeiramente o que sentia. Achei que um par de amantes tinha ficado sem parte da sua celebração. Não era pelo facto de eu ter os legumes ou o arroz ao lume que ia descurar o meu lado de ficcionista. Havia alguém que tinha encomendado chocolates e champanhe para celebrar qualquer coisa. Eram duas caixas de chocolates, ainda por cima.

Natália tentou ser célere e eu dava-lhe conta deste desconforto de ter nas minhas mãos a alegria interrompida de outros. E agora? “Não se preocupe. Eu vou solucionar o seu problema”. Tentei, em inúmeras mensagens, chegar ao coração de Natália, suspeitando sempre que estaria a falar com alguém não humano. Não é curioso que todos os nomes destes alegados assistentes sejam de mulheres? Se fosse Gervásio ou Washington eu não ia achar que seriam capazes de resolver o meu problema? Serão afinal as mulheres as únicas responsáveis por dar solução ao erro dos homens?

Natália voltou, minutos depois, para dizer, que quem quer que fosse que tivesse encomendado aquelas guloseimas (a palavra guloseimas é minha que a máquina ainda não sabe muito bem o que diz), não se acusara. E, portanto, eu devia ficar com a encomenda ou descartá-la. Disse, mais uma vez, a Natália, que estava triste por não ver aquele saco chegar aos seus destinatários, mas acatei o conselho.

Enquanto punha a mesa e desligava o fogão, pensei demoradamente no saco e na tristeza de quem não o viu chegar. E, agora, dias depois, penso: e se encomenda fosse de uma pessoa só, que se queria celebrar a si própria? Por que razão pensei eu num casal expectante na chegada daquilo que os celebraria com retumbância? Era só um saco, mas eu quis, à força toda, ver ali a bagagem do amor.

Passou quase uma semana e sem desenvolvimentos. Ninguém se acusou.

Sou uma romântica. Vejo nos pequenos gestos do quotidiano um caminho que muitas vezes não existe, mas que me leva sempre ao amor. A vida faz muito mais sentido quando a celebramos a dois, por muito que gostemos de nos celebrar a nós próprios. É o amor que nos valida. De que me servem os livros ou as canções se não os pudermos partilhar com os outros?

Entretanto fomos fracos e comemos uma das caixas de chocolates.

O coração ainda bate.

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