
“Quando cheguei aqui, foi uma coisa… parecia que tinha perdido um filho.” O “aqui” é Mêda, terra de vinha e olival, na fronteira entre o Douro e a Beira Interior, distrito da Guarda. E Rui Martins, quarta geração da Família Carvalho Martins, fala do fogo que roubou parte da produção de vinho deste ano e lhe ameaça o potencial produtivo de uma vinha que o pai plantou há cerca de 40 anos.
Estamos em Longroiva e o cenário é desolador. Uma das encostas, “mais de um terço” dos 23 hectares de vinha da propriedade, foi lambida pelas chamas. Rui vai-nos falando do prejuízo que tem e que continuará a ter, enquanto saca, aqui e acolá, da tesoura de poda para cortar varas e ver se têm seiva. Quando há humidade, incha a esperança do produtor que apostou tudo no modo de produção biológico. “Agora estou mais… Já passou algum tempo. E vejo a vinha dar bons sinais. Somos agricultores, estamos habituados a que todos os anos aconteça alguma coisa. Umas vezes pior, outras vezes melhor. Mas a questão aqui é que são 40 anos [de trabalho]. Todas as videiras desta vinha foram plantadas por nós, pela nossa família”, comenta.
Rui é formado em Direito, mas virou agricultor quando a família, historicamente fornecedora de uva para as casas de vinho do Porto (ainda é esse o destino da maioria das uvas que produzem), se lançou no mercado com marca própria, os vinhos Golpe. O irmão, Vasco Martins, é enólogo, e Rui está com a gestão diária do projecto e a viticultura. Tinham obtido a certificação em biológico no início de 2024. Aquilo que tinham — e têm ainda como vantagem competitiva — revelou ser terra fértil para o fogo progredir.
A 16 de Agosto, o grande incêndio que surgiu da junção dos fogos de Sátão e Trancoso desassossegou os de Mêda. Rui estava em Lisboa e ao telefone foi o feitor quem lhe deu conta do que se passava. Na estrada, havia quatro carros de bombeiros, mas a estratégia era proteger pessoas e bens, no caso, uma exploração com vacas. Apesar disso e de as bermas das estradas estarem limpas, o fogo galgou e foi à vinha. O estrago — pelo menos, 30 mil litros de vinho tinto, que já não produziu este ano — foi maior por causa da opção pela agricultura biológica e regenerativa. “Tinha muita matéria vegetal seca no chão. Nós não capinamos [cortamos] as relvas, calcámo-las com um rolo, que comprámos há um ano. Este ano choveu muito [na Primavera] e havia muita vegetação. Foi um ano bom nesse sentido. Tínhamos um mulching [cobertura morta] espectacular, mas que foi o catalisador que fez com que o fogo se propagasse.”
O tal mulching ajuda a reter água e humidade no solo, substitui-se às infestantes e funciona como escudo térmico, reduzindo a evapotranspiração, para além de promover biodiversidade. “Na Primavera, isto é lindo.” Apesar do “duro golpe”, patrimonial mas “sobretudo emocional”, a convicção da família num modo de produção mais sustentável permanece a mesma, embora com algumas alterações, como explica Rui. “Nós nem nos caminhos capinávamos. Agora, ao pé do mato [que não é seu], se calhar vamos ter de fazer corta-fogos. E vamos ter de dar uma capinadela mais profunda, às tantas, de x em x linhas [de videiras].” Os Carvalho Martins não tinham seguro, “mas o seguro nunca cobriria 40 anos de vinha”, retorque o produtor, que só nos últimos dois anos, só na vinha, tinha investido na plantação de 1 hectare de vinha nova e na enxertia de “uns 500 pés de vinha” noutra parcela, por exemplo.
A família ainda não fez contas à vida, mas sabe que as perdas financeiras serão sempre superiores aos 10.000 euros de tecto máximo do apoio excepcional aos agricultores que o ministro da Economia e Coesão Territorial anunciou dias depois dos incêndios que assolaram o país em Julho e Agosto, sobretudo nas zonas Norte e Centro. Os Carvalhos Martins meteram a papelada à Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR) do Centro a 9 de Setembro, mas até à data não foram sequer contactados.
Nelson Garrido
O PÚBLICO questionou o gabinete de Manuel Castro Almeida sobre o total de candidaturas recebidas, o montante global de prejuízos — em Agosto, o ministro estimava que seriam superiores a 30 milhões de euros — e o valor global dos apoios a pagar efectivamente pelo Estado. Na resposta, o ministério refere que, “até ao momento, nas regiões afectadas pelos incêndios de Julho e Agosto de 2025, foram apresentadas 6126 candidaturas por agricultores” de 56 concelhos, quase todos das regiões Norte e Centro, nove no Alentejo, e que “o valor dos apoios pagos ou em pagamento, após vistoria conjunta dos técnicos municipais e das CCDR, ultrapassa neste momento os 3,7 milhões de euros”. A mesma fonte acrescenta estar ainda em aberto quer o número de candidaturas, que “está permanentemente a ser actualizado”, quer os montantes que serão pagos pelo Estado, uma vez “que diariamente estão a ser processados novos pagamentos, à medida que decorrem as vistorias”.
À data que o gabinete de Castro Almeida respondeu ao PÚBLICO, tinham sido “recebidas pela CCDR Norte 3113 candidaturas a apoios, das [quais] 1147 [estavam] com avaliação concluída e 1966 em análise”, e a CCDR Centro recebera “2687” candidaturas. Segundo a tutela, no Norte “foram já pagos apoios a agricultores de 23 concelhos” e no Centro foram “validados ou pagos apoios a agricultores de 14 concelhos”. Segundo a resposta do Governo, estes “apoios começaram a ser pagos no início de Setembro”.
O fogo chegou com tudo a Longroiva e a sorte foi ter abrasado as videiras — o inferno não durou mais de “uma hora” —, sem as queimar completamente. “Muitas varas estão verdes”, partilha Rui, esperançado.
Depois de o fogo passar
A “literatura” disponível sobre o que fazer a seguir a um incêndio como o da Mêda é contraditória. Uns aconselham uma pré-poda, como a que Rui fez, outros não. E, até por isso, os produtores afectados vivem numa grande incerteza, sobre a qual só a Primavera trará alguma luz. “O que é a pré-poda? Fizemos uma poda assim superficial cá em cima [nas varas], para depois em Março, Abril, percebermos o que é que vai crescer ou não. Porque nós não sabemos que gomos é que estão prejudicados. E assim temos uma atitude em que não gastamos assim tanto dinheiro agora, já preparamos o caminho para a poda, sem comprometermos tanto.”
Também Lúcia e Américo Ferraz, dos vinhos Souvall, tiveram perdas irreparáveis. Também eles promoviam os cobertos vegetais nos corredores entre videiras, semeados ou espontâneas. E também se candidataram ao apoio do Estado, não tendo sido contactados até ao momento. “Sinceramente, não esperamos muito. Tudo indica que será uma ajuda muito pequena — se chegar a haver alguma — e apenas em relação à vinha. O olival e as amendoeiras que perdemos não estão cobertos, por isso não haverá qualquer tipo de apoio por aí”, disse ao PÚBLICO o produtor, que tem ao todo 25 hectares de vinha, em Vila Nova de Foz Côa e na Mêda e tem vinhas afectadas pelos incêndios “onde a perda foi total” e danos também naquela que é a sua “maior vinha de brancos” do projecto. Tudo somado, são menos “10 mil litros de vinho face ao ano passado”, entre os quais 3 mil litros de vinhas muito antigas” que entravam num dos “lotes mais especiais” do produtor.
“Para um pequeno produtor como nós, estas perdas são devastadoras”, lamenta Américo Ferraz, que, apesar de tudo, tinha seguro. “O engenheiro da seguradora já veio ao local para avaliar os estragos, mas estamos à espera de uma declaração do tribunal para que tudo possa avançar. É um processo lento, e a incerteza acaba por ser angustiante”, relata. Foi o único produtor com quem o PÚBLICO falou nesta reportagem que tinha seguro de colheitas. “E sabe porque é que nós fazemos seguro? O meu sogro era mediador de seguros e nós na família temos seguros para tudo”, explica Lúcia Ferraz. Valeu-lhes, ainda assim, essa tradição familiar.
Vinhos Souvall
Márcio Lopes, produtor e enólogo com vinhas arrendadas na Mêda, também se recusa a “atirar a toalha ao chão”. “A ciência diz que é para esquecer, mas há que ter um bocadinho de fé de que a vinha voltará a produzir minimamente. Para já, não há muito a fazer, o avançar do incêndio — aquilo foi quase um superincêndio — foi crítico, agora é ter esperança e fé e esperar que, em Março, Abril do próximo ano, a videira rebente.” Apesar do optimismo, para Márcio, que também faz vinho noutras partes do Douro e na região dos Vinhos Verdes, o incêndio de Agosto significa o fim de uma referência icónica, o Permitido Branco de Centenária.
O vinho tinha origem em três parcelas de vinha velha de um dos 50 viticultores com quem trabalha nas duas regiões. As três parcelas entravam na referência premiada, arderam as duas maiores. No conjunto das três vinhas, a produção não chegava a 2000 quilos de uvas — a vinha velha produz menos, mas, quando é bem tratada, entrega mais qualidade e equilíbrio —, mas o vinho que dali saía tem um preço recomendado de 40 euros a garrafa. Só o prejuízo de não ter tido colheita em 2025 anda “na ordem dos 50 mil euros”. Da parcela mais pequena, a viticultora Ana Filipe só conseguiu tirar 180 quilos. Não é nada, e ainda por cima “as uvas não cheiram nem sabem bem”. Mesmo quando as vinhas não ardem, há a questão do fumo, que passa para a organoléptica do vinho (é o chamado “smoke taint”).
Este ano, o produtor vai pagar o mesmo que pagaria se tivessem entrado na adega os tais 2000 quilos de uva (“é o mínimo que podemos fazer, porque todo o trabalho da vinha foi feito”). Sabe que não poderá fazê-lo sempre. Ana Filipe também não tinha seguro de colheitas. “Mas, imagine, os seguros são caros e essa é uma questão ingrata, porque no final desta colheita o seguro pagaria 40 cêntimos por quilo de uva. Se a vinha foi destruída, o seguro não paga uma replantação”, defende o enólogo.
Nelson Garrido
Uma replantação também não reporia o que se perde quando arde uma vinha velha. Nas vinhas velhas que davam origem ao vinho de Márcio, há 15 castas identificadas e outras tantas por identificar. O famoso Vitis, o Programa de Apoio à Reestruturação e Reconversão da Vinha, não foi pensado para preservar esse património, porque apoia a aquisição de enxertos prontos, não a enxertia no local, por exemplo utilizando varas de outra vinha velha. Nem está pensado para repor falhas em vinhas mais recentes, como apontou ao PÚBLICO Rui Martins — podia ser uma opção em vinhas como a sua, em que há videiras a sofrer mais do que outras.
Apesar das limitações que aponta, Márcio Lopes já vinha pensando numa forma de contratar um seguro que protegesse as culturas dos seus fornecedores de uva. Depois do último Agosto, quer avançar com essa protecção. “Efectivamente, ficamos com a maior parte da [sua] produção. Vamos sempre comparticipar.”
“Fruta não será a mesma”
Márcio fala dos próximos tempos com serenidade. Apesar disso, diz ao PÚBLICO que o dano se repercutirá “seguramente” nas colheitas seguintes. “Se nós conseguirmos produzir no futuro 500 quilos de uva aqui, será muito. E, da minha experiência com incêndios noutras vinhas, a fruta não voltará a ser a mesma”, lamenta. Em 2017, viu a primeira vinha que plantou na sua Quinta do Pombal, em Vila Nova de Foz Côa, ser afectada por “um golpe de calor” vindo de uma propriedade vizinha, essa assim apanhada pelo fogo, e “as videiras afectadas, 30% da parcela, ainda hoje em dia estão muito fracas, dão fruta um bocado desequilibrada”, partilha.
“Não sei se daqui a dez anos teremos a mesma qualidade. Vai ser difícil recuperar.” Nas vinhas de Ana Filipe, a opção também foi fazer “cortes de poda”, um compromisso entre “serrar cepas” — o ideal, segundo Márcio, para se perceber já o quão afectadas ficaram as videiras — e não fazer nada. “Temos de ser pacientes. Pode ter ardido a parte superior e a raiz estar bem. Normalmente sofre sempre muito, é muito impactada. Mas é pôr uma velinha e esperar que [na Primavera] abrolhe algum dos olhos mais da base. É muito na fé.”
Os cachos minúsculos que vemos nestas vinhas e os rebentos, por cima e em alguns casos, julgo, aos pés das videiras, são “bons indicadores”. Mas, para já, é mesmo de “fé” que vive o ânimo de viticultores e produtores de vinho no concelho. Aires Amaral tinha, tem, as suas vinhas em processo de conversão para modo de produção biológica. São ao todo 18 hectares, quase tudo ali pela Mêda, arderam-lhe seis, incluindo uma parte de vinha velha. “Há dois anos que não ponho herbicida, nem sequer em patamar [nos taludes]. Aí, capino. E tinha capinado entre cepas relativamente pouco tempo antes de arder”, contou ao PÚBLICO o filho da terra.
Cortar a vegetação nas linhas de videiras foi também o que terá minimizado o dano da vinha da família Carvalho Martins e do casal Ferraz. Nos bardos, pelo menos, não havia matéria combustível. O mesmo não pode dizer Márcio Lopes.
Nelson Garrido
Nelson Garrido
“Mêda dos quatro costados”, Aires Amaral viveu longe da Mêda toda a vida — esteve ligado à área financeira —, mas nos últimos anos rendeu-se ao “chamamento da terra” onde o pai foi “armazenista de vinhos”. Entrega a maior parte das suas uvas na Adega Cooperativa de Távora-Varosa, mas tem desde 2019 a marca Pater, sob a chancela Casa Agrícola Pinto do Amaral.
Aconselhado por técnicos da Associação de Agricultores para Produção Integrada de Frutos de Montanha, da Guarda, não tocou nas vinhas, nem para apanhar os cachos que o fogo não tocou. A ideia, explica, era deixar a “planta absorver a humidade da própria uva”, na esperança de que esse néctar ajudasse à recuperação da videira. “A minha vinha está péssima, péssima. Quando olho para ela, fico doente.” Foram 25 toneladas de uva que não chegaram sequer a entrar na adega.
“As uvas que vendo já tinham destino. Aí devo ter perdido à volta de 20 mil euros. No vinho que não fiz, estamos a falar de 75 mil euros. E isto apanha-me quando eu estava a ganhar tracção.”
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