O meu corpo, as minhas preces

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“Ah é assim? Um corpo de mulher?” Ficava a olhar para os corpos das mulheres que me fixavam da página lisa e lustrosa das revistas femininas que a vizinha trazia para casa da minha avó. A vizinha era mais velha do que eu, e portanto eu devia-lhe uma espécie de subserviência que as crianças pequenas devem quase espontaneamente às mais velhas. “Sim. São as top models! As super modelos!” Ela apresentava-as como se fossem super heroínas de uma dimensão para a qual eu não conseguia imaginar uma porta, nem um mapa sequer. As mulheres estavam em Paris, isso eu percebia. Imaginava que Paris era um lugar longínquo onde as mulheres tinham a pele branca sem um único poro, sinal ou arranhão, e cabelos longos que escorregavam sempre soltos, tinham pernas esguias e hirtas que me faziam lembrar as canas compridas com que a minha avó suportava os excertos que fazia nas árvores.

À minha volta, as mulheres atavam os cabelos em nós enxutos, a pele tinha marcas, sulcos e cicatrizes, e as pernas da minha avó eram curtas e ágeis, e dobravam-se para dar ração aos coelhos, para arrancar favas, e aspirar os recantos escondidos atrás dos móveis das casas onde fazia biscates na limpeza enquanto cantava as suas preces.

Eu admirava as pernas longas das mulheres no papel, que se estendiam como um adorno, que não deviam dar jeito nenhum para apanhar favas, contemplando a possibilidade de um dia, tal como se fazia nas árvores, o meu pequeno corpo poder vir a ter um enxerto de pernas de Paris. Para que pudesse ser uma dessas majestosas e longas top modelos… “Top models!”, corrigia a mais velha.

“Podemos ir brincar?” As minhas pernas tinham vontade de andar de bicicleta, tinham arranhões e crostas nos joelhos, eram muito mais escuras do que as das mulheres de papel, e terminavam em dois pés que preferiam andar descalços sempre que possível. Enchiam-se de formigueiros quando era obrigada a ficar sentada muito tempo, abanavam desesperadas debaixo das mesas da escola, doíam-me os ossos porque cresciam, encolhiam-se e tapavam-se com vergonha sobre as partes do corpo que me explicaram ser secretas e só minhas, e das quais viriam a irromper prazeres secretos e só meus também. Com elas, saltava muros, galgava pedras e dissolvia pensamentos endurecidos no peito enquanto corria a toda a velocidade, e nas minhas pernas, eu era feliz, aborrecida, livre. Mais do que ter um corpo eu era o meu corpo. Percebi cedo que o corpo onde eu morava, sem outra geografia possível, era um habitat simultaneamente imprevisível, gratificante, acolhedor, perturbador.

Quando as pernas começaram a amadurecer e a ficar redondas e grossas, cada vez mais distantes do meu peito também redondo de adolescente, as minhas pernas, já não eram só minhas. Eram as pernas da minha mãe, da minha avó e das suas irmãs. “Tem as nossas pernas!”, diziam com um certo desapreço pelo que era próprio da genética rude e selvagem que passava de geração em geração, símbolo de serem mulheres para trabalhar e não corpo para adornar.

Um dia, uma tia que vinha de França olhou para as minhas pernas e disse: “Olha já viste? Tem as pernas gordas!” e eu contive duas lágrimas grossas para não sucumbir ao orgulho do corpo, a esse peso sobre as pernas das mulheres que se ferem por não gostarem de ser corpo, por se odiarem no espelho distorcido da linhagem de corpos mais jovens. Imaginei que aquela tia antes de voltar a Paris, deixaria certamente as pernas na sua casa pobre e pequena da aldeia, para se soltar daquele corpo hostil e familiar que tanto desprezava, como fazem as lagartixas quando se livram da cauda, que continua a mover-se mesmo separada do corpo.

Fui crescendo e as minhas pernas foram-me levando pelo mundo, a desviar-me de fendas, a escorregar em pisos incertos e a galgar muros vários. Viajaram encolhidas em voos de longo curso, repousaram cansadas em camas de hotéis, correram cansadas, enlaçaram-se ternurentas, sustiveram-se diante de precipícios. Durante algum tempo equilibrava-as periclitantes e confusas em saltos demasiado altos, durante horas demasiado longas — talvez ainda assombrada pelo papel lustroso das revistas que me faziam sentir demasiado pequena, insuficientemente curta.

Mas à medida que fui habitando este corpo, fui ocupando o seu espaço cada vez com mais propriedade. Com um prazer — não só secreto, um prazer de ser este corpo. Não consigo dissociar-me desse corpo que sou eu. Que me dói quando embate, que me enfraquece quando tenho fome, que se retrai quando entristece, me manda parar quando se esgota, quando me esgoto, que se transformou com bocadinhos dos outros corpos que também o atravessaram, que foi marcado com cicatrizes e arranhões.

A pele que me forma. Por fora. Por dentro. Gosto do que me conta e do que conta sobre quem sou, mesmo quando me diz do inevitável, do que envelhece e muda, do que custa ouvir e reconhecer. Não há nenhuma mudança de estação que não se infiltre intensamente entre os meus tecidos. E o que sou altera-se quando corro, caminho, bebo, toco, nutro. Não sou religiosa. Mas às vezes é no corpo que encontro as minhas preces.

Temo que por vezes ainda nos estejamos a esquecer de ser corpo (também eu me esqueço). A tratá-lo como um adorno acessório, exterior às nossas vontades, tentamos emagrecê-lo, encolhê-lo bruscamente, esticá-lo ao limite do cansaço, como se fosse uma anatomia de papel lustroso em vez de uma anatomia viva cheia de recantos escondidos, prazeres secretos e cantos misteriosos. 

Enquanto escrevo, a minha avó está sentada de corpo curvado, com as pernas dobradas, na mesma divisão da sua casa onde em tempos eu folheava as revistas da vizinha. O pé pousado no pedal marca o ritmo. Tac. Tac. Tac. Podia estar a tocar bateria de canção de rock, mas está a costurar na sua máquina Singer antiga, que ainda funciona. Trauteia as suas preces como se nascessem do pé. Viu três filhos nascer. Viu um deles perder uma perna num acidente, viu um bisneto nascer, um neto morrer. Tac. Tac. Tac. O corpo renova-se com vida. Penso que bom é ter um corpo. O meu corpo. As minhas preces.

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