Há viagens com princípio, meio e fim. E há viagens que, independentemente do ponto de partida e do ponto de chegada, nunca mais acabam. Percorrer com Luís Vasconcelos as quase 20 fotografias que dão forma à exposição Route 66, na recém-inaugurada Lumina Galeria, em Lisboa, é perceber que, apesar de ter acontecido há 30 anos, a viagem que fez ao longo da quimérica estrada norte-americana continua a desenrolar-se na sua cabeça.
Claro que o volante do Pontiac Catalina com que foram feitos os quatro mil quilómetros já não roda nas suas mãos (nem na dos três companheiros de viagem), mas é notória a limpidez com que recorda inúmeros pormenores da viagem, desde o momento do aluguer do carro à única avaria da longa estirada; desde um encontro com um camarada de armas de Elvis Presley quando ambos cumpriam a tropa na Alemanha ao esplendor encantatório do nascer do Sol no Grand Canyon.
E depois — para além das memórias de episódios mais ou menos caricatos ou das paisagens que o deslumbraram ou que o decepcionaram — há pensamentos que problematizam a chamada “Mother Road” à luz do presente. E é aqui que a viagem continua. Diz, por exemplo, que lhe parece “impensável alguém como [Donald] Trump caber naquela América” de beira de estrada dos anos 1990, que ao longo de décadas foi aprimorando a arte de bem receber estrangeiros, viajantes e outros migrantes. Foram três semanas de caminho on the road (que resultaram numa grande reportagem para a revista do PÚBLICO, com texto de Nuno Ferreira), durante as quais aquilo que Luís Vasconcelos mais se lembra de sentir se resume a uma palavra: “Liberdade”. Um bem individual e colectivo tão fundamental quanto acossado nos EUA de hoje.
Luís Vasconcelos
luis vasconcelos
A ideia de regressar às fotografias de viagem através dessa imensa linha de alcatrão que traça uma diagonal por oito estados — ligando Chicago a Los Angeles, “o lugar onde o Este e o Oeste se encontram” — foi de Bruno Portela, fundador e director artístico da Lumina, que se apresenta como um espaço para “a fotografia documental e de autor”. Antecipando o centenário “da estrada mais famosa do mundo” em 2026, e revisitando os negativos com Vasconcelos, várias imagens foram ampliadas pela primeira vez para a exposição inaugural de uma galeria de fotografia não exclusivamente de fotografia, já que apostará noutras artes visuais, sempre na mesma parede — a que está de frente para a entrada. É um espaço que terá a curadoria permanente de Rute Reimão e que foi baptizado como Le Mur.
No primeiro dueto da Lumina conjuga-se fotografia e pintura — às imagens indagadoras e clarividentes de Vasconcelos dessa estrada exuberante e prenhe de acasos junta-se um tríptico de António Faria de tons azulados, We’re on the Road to Nowhere, inspirado na famosa canção dos Talking Heads. Ambos seguem vias distintas para nos levar a pensar na mesma coisa — na noção de caminho. Se nas primeiras sobressai um certo espanto contido pela diversidade, que se inclina para o gigantismo da arquitectura, para a lonjura da paisagem e para a exuberância e alguma estridência do quotidiano norte-americano, o segundo convida mais à introspecção silenciosa, ainda que de maneira paradoxal através de um slogan extraordinariamente sonoro, acompanhado de uma vegetalia densa, complexa, selvagem.
Aliás, esse arvoredo livre de amarras, vedações ou atilhos encontra semelhanças na descontracção dos participantes de uma parada gay numa das fotografias mais ilusionistas da exposição: aquela que mostra “uma praia” repleta de corpos luzidios montada em cima de um carro alegórico. Este encontro de Vasconcelos com a celebração da diversidade e da liberdade de escolhas aconteceu no último dia de viagem pela Route 66, em Santa Monica, na grande parada gay anual de Los Angeles. O fotógrafo recorda a alegria por ter entrado naquela festa imensa sem que isso estivesse planeado. Foi o dia em que mais fotografias tirou. Um grand finale, junto ao mar.
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