“Too Much”. O Coração Ainda Bate

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Era verão, estava de férias com a minha filha e, numa tarde cinzenta, fomos às compras. Havia, numa das muitas montras daquela superfície comercial, uma saia plissada branca. Era uma saia distinta, de alguém que podia quase jogar ténis com ela e mante-la depois fora do court. Devo ter dito que gostava da saia, mas que não me ficaria bem. Não me lembro com rigor do que disse, frente à montra, mas do que a minha filha respondeu de forma quase altiva: “tu é que vais fazer com que a saia te fique bem”. Eu sabia perfeitamente o que ela queria dizer com isso, até porque, nessa altura, acabara de ver a série “Too Much” de Lena Dunham com Meg Stalter e onde o corpo é irrelevante face à questão de podermos ser ou ousar.

Talvez ainda reforçada por essa temporada de empoderamento feminino, investida pela força que resulta da união das mulheres, e mais ainda das palavras certeiras da minha filha, decidi entrar na loja. “Aquela da montra!” – apontei sem hesitar para a saia impossível. “Um M”. Minutos depois a rapariga simpática, bem maquilhada, voltava com a saia na mão. Paguei, agradada com o desconto de outlet, e saímos da loja, a rir do nosso atrevimento. De ousar, usando. Reparem que parece que omiti aqui o momento da prova, mas esse momento não chegou a existir. Eu levei a saia sem experimentar, porque afinal decidíramos que eu caberia no tamanho, independentemente da minha forma. Não foi a primeira vez que comprei uma peça sem a provar, mas era inédito que trouxesse aquela saia em particular, sem ter a tentação de ver se o meu corpo a comportava.

Quando chegámos a casa, experimentei a saia. Caía perfeita. Ri de uma forma inesperada como se fosse uma miúda. A minha filha também se riu, de me ver feliz. Afinal tinha sido ela a decidir que a saia me ficava bem, antes de me ver com ela.

A geração da minha filha é muito mais livre do que a minha. Muitos anos nos separam, é verdade. Os suficientes para que a liberdade se instalasse sem forma ou género.

Sempre contornei o meu corpo, o meu M, com as roupas escolhidas a dedo. Passei do preto para as cores todas. Das saias para as calças. Casei de smoking. Misturo bolas com riscas, flores com geometria variável. A forma como me visto é um prolongamento da minha identidade. Acentua-a. Não sou refém do meu corpo, ainda que muitas vezes pare para pensar em que medida(s) esta sociedade me condiciona. Não tenho dúvidas de que fui muitas vezes preterida em termos afectivos pelo meu corpo não ser perfeito. São os homens que estão reféns desse estereótipo. Qualquer mulher inteligente com humor pode não ser suficiente. É preciso que eles sejam acima da média, para não se cingirem ao olhar medíocre e castigador sobre as mulheres. Que não queiram exibir o troféu, mas a mulher que os surpreende pela forma como pensa e age. São raros esses homens. Os homens que amam a Lena Dunham ou a Meg Stalter.

A saia branca plissada teve um impacto forte em mim, porque fui confrontada com a minha autocensura. Teve de ser a minha filha a ensinar-me aquilo que eu julgara já ter aprendido. Porque é que aos 54 anos ainda estou presa àquilo que a sociedade convenciona ser o bom e o bonito? Quem temo afinal? De que forma o olhar alheio me condiciona?

Já fui mais magra e mais gorda. Sou um M que se estica para lá das medidas. Sou exagerada. Como e bebo, negoceio, com os valores das minhas análises ao sangue, o que me corre nas veias. Gosto do tudo e do nada. Posso ser minimal e barroca. Aprendi ao longo dos anos que podia ser quase tudo e, no entanto, na montra da saia plissada, plissei. Dobrei-me em desculpas que inventei para mim própria, para não poder ter aquilo que supostamente fica bem às outras. Foi preciso a minha filha adolescente, menor de idade, maior de raciocínio, lembrar-me que eu posso caber onde eu quiser.

Usei a saia em várias circunstâncias. Sinto-me a flutuar nela.

No momento que antecedeu a escrita desta crónica, tendo o corpo como ponto de partida, lembrei-me que tinha quase três anos quando fui baptizada e vestia uma saia plissada branca. Tenho fotografias, com ar desolado, dentro da saia onde os meus joelhos tocavam um no outro. Cinquenta anos depois cruzo as pernas entre os plissados. A dobra do tempo é magnífica. Não fosse o corpo por vezes trair-nos e estaríamos cada vez melhores na nossa pele.

Too much, uma ova!

O coração ainda bate.

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